sexta-feira, 27 de junho de 2014

'Eram tempos em que podíamos morar em um modesto sobrado de uma vila fabril, sem ter medo de assaltos'

'O bom eram as raras vezes em que molhávamos os pés na Praia Grande, construindo castelos de areia e olhando o tempo passar'
Por Ricardo Soares*

Seu corpo era grande e ficava meio espremido dentro do fusquinha marrom naquele suado trajeto diário entre São Bernardo do Campo e o Jaraguá. No painel do carro, uma imagem de São Cristovão guiando seus caminhos. Um imã - amuleto. A certeza de que além da lonjura do percurso haveria de ser feliz o retorno para casa.

Chegava com o pão debaixo do braço - a gente chamava de bengala, lembra? - e sempre chupando balas de hortelã para disfarçar o bafo da talagada que havia tomado na padaria. Escondido da mãe que, em virtude das bebedeiras do avô, não suportava homem que bebia. Aí muitas vezes eu lhe tirava os sapatos e as meias e ia buscar os chinelos velhos no quarto. E você esperava a janta falando pouco.

Dura rotina, sem espaço para muita fantasia. O bom eram as raras vezes em que molhávamos os pés na Praia Grande, construindo castelos de areia e olhando o tempo passar com nossos calções listrados. Eu, magro e banguela. Você, gordinho e feliz, ainda mais pelas ostras que às vezes ancoravam em nossa mesa. Cidade Ocian, Vila Mirim, Vila Tupi. Um cenário antigo saído de algum filme do neo-realismo italiano. Éramos italianos e não sabíamos. 

A vida não te deu tantos bons empregos e te deu três filhos bem diferentes. Um menino e duas meninas. E, ao que consta, você sempre exerceu com gosto e ciúme sua paixão pela família. Um gosto que suportava as reprimendas quando você tomava sopa fazendo barulho com a boca ou quando fumava demais no meio das refeições. Um gosto que suportou as sutis humilhações que os mais bem aquinhoados da família lhe impunham.

Homem do interior. Moreno e troncudo. Quase grosso, mas com um refinamento que ia muito além das etiquetas. O gosto pela sinceridade, o intuitivo nojo a toda espécie de hipocrisias. O desgosto por ter que enfrentar os rituais entediantes dos batizados, casamentos, noivados e finais de ano onde todos fingem viver em harmonia. 

Este interior distante que marcou as feias unhas dos teus pés. Afinal, era Assis, Rancharia, Mombuca ou Presidente Prudente? Sua alma carente passou por todos esses recantos, mas veio procurar fincar raízes em uma pensão barata no bairro da Liberdade, em São Paulo, quando lá não era ainda o reduto dos orientais. Como será que você via o sol se pondo a partir de uma janela da rua Taguá?

Esse interior, tosco por certo, deixou-lhe enormes sensações de insegurança refletidas na sua mania de trancar e destrancar a mesma porta várias vezes para ter certeza de que todos estávamos seguros. Eram outros tempos. Tempos em que podíamos morar em um modesto sobrado de uma vila fabril, sem ter medo de assaltos e violências apocalípticas. Tempo em que os gatunos mais ousados só roubavam bujões de gás do nosso quintal. Tempo em que você plantou uma simpática parreira de uva de onde colhíamos as nossas sobremesas de verão e de onde um tio sírio tirava as folhas tenras para fazer deliciosos charutinhos recheados de carne moída. Tempo em que eu deitava abaixo dessa mesma parreira e via o céu ainda cheio de estrelas e imaginava o quão distante estava o ano 2000, onde eu já seria um velho de 40 anos. 

Esta parreira de uva servia de imaginária cesta de basquete para mim. Ali converti meus primeiros pontos importantes e me imaginei Ubiratan, Carioquinha, Hélio Rubens. Ali enfrentei e venci o time dos Estados Unidos, muito antes de Oscar e sua trupe fazerem o mesmo naqueles jogos Panamericanos . E os muros daquele quintal tabelavam comigo e minhas bolas de plástico. Depois joguei basquete de verdade. E parei logo seduzido por palavras. Dei de escrever para sua desconfiança. E assim segui este caminho tendo hoje a pachorra de expor as vísceras de minha infância só para dizer o quanto sinto a sua falta .

Nunca esperei chegar a tanto com tantas palavras baratas, emoções achadas num balcão de saldos, emoções comuns a tantos de nós. Mas sei que as palavras tem cheiro e eles me remetem a situações idas e vividas num tempo em que meus olhos ainda imaginavam o que podia haver depois das curvas. Na verdade, isso não importava porque entre eu e a morte ainda havia você na trincheira, de certa, forma me defendendo. Hoje, o pai já não há. Há apenas o filho e seu espírito que não é santo. Perdido em meio ao tiroteio tento me abrigar sob a marquise porque além dos tiros a chuva chegou. Lava as minhas lembranças e me deixa exultante quando consigo expelir o pessimismo e volto a crer que as palavras libertam muito mais do que prendem. 

E, apesar de toda a sua desconfiança, meu pai, eu me sinto gratificado por todos estes anos que me dediquei a namorar com as palavras. E, apesar de sua distância, devo dizer que elas me servem quando quero expressar o quanto sinto a sua falta. Pai, era uma noite bonita e os americanos chegaram na lua . Estávamos juntos na sala. Quem viu isso junto nunca mais se separa. E, afinal pai, como é a Terra vista aí de cima?

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