quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Fator humano II

Eu pleitearia antes a favor de um humanismo humilde, um humanismo em que todos possam se reconhecer

Uns dias atrás escrevi sobre o “fator humano”, por ocasião da queda de um viaduto em Belo Horizonte e do abatimento de um avião na Ucrânia. Falhas humanas devida à pouca atenção que se dedica ao fator humano. Agora nos lembramos de outra queda de avião, com um promissor político brasileiro e mais outras seis pessoas a bordo. Ainda não se sabem as causas. O fato de a caixa preta só ter revelado os registros dos voos anteriores mostra que há algum “fator humano” no meio, ainda que seja “apenas” a distração. E mesmo se se tratasse de um defeito de fabricação ou de manutenção, ainda seria uma falha humana, não do piloto, mas da fabricação, que, em última instância, mesmo com um exército de robôs, é um processo humano.

Acabo de ler um resumo do monumental livro do economista francês Thomas Piketty, Le capital au XXIe siècle. Livro que suscitou minha curiosidade porque a revista Veja lhe dedicou, uns meses atrás, uma crítica ferrenha. O que interessa aqui é que Piketty faz questão de afirmar que a economia é uma Ciência Humana e deveria se chamar “economia política” em vez de “ciência econômica”. A economia não é dirigida por uma mão invisível, mas por fatores humanos. Ainda bem, pois o que se vê, depois de se ter solto as rédeas para essa mão invisível nos últimos trinta anos, não é nada animador. Ela parece, de fato, fazer tudo para que os recursos econômicos se concentrem em uma única mão...

O que quero sublinhar hoje é que o “humanismo” não é, em primeiro lugar, uma época da história cultural, nem um programa escolar, embora seja muito importante que as escolas fomentem o humanismo. Mas é, antes de mais nada, uma atitude. A atitude de sempre pensar no valor humano das coisas, de ver o ser humano como a medida de todas as coisas, como dizia Protágoras. Mas a esse adágio de Protágoras devem ser feitas algumas restrições. “Todas as coisas”... enquanto dependem de nós. E, sobretudo, evitando a hýbris, a altivez que faz o humano ocupar o lugar de Deus. Mesmo se Deus não existisse deveríamos inventá-lo, para que nenhum humano ocupasse o seu trono!

Imaginando os deuses de modo humano, o humanismo grego aproximou perigosamente os humanos de Deus... Não quero aqui discutir essa sensação que tenho, só quero insistir no sábio conselho de deixar Deus ser Deus para que o ser humano seja realmente humano. Não misturar as coisas! Quem olha para o humanismo da Renascença, em algumas de suas expressões, tem essa impressão de que o ser humano está sendo divinizado, ainda mais porque o homem bom e belo à moda da Renascença é muito individualista.

Eu pleitearia antes a favor de um humanismo humilde, um humanismo em que todos possam se reconhecer, não apenas os príncipes e semi-deuses. Alguns dão a isso o nome de humanismo social, outros, de socialismo humanista. Eu o chamaria de evangélico, ou cristão. Inspirado por Jesus. A questão é: qual é o ser humano que se imagina como “medida de todas as coisas”? Aquele que se identifica com o poder e o brilho, achando-se o centro da humanidade, ou o que se doa aos outros em amor e solidariedade, até o fim, até a morte se for preciso? Em sua primeira página, a Bíblia diz que o ser humano é criado à imagem e semelhança de Deus (Gênesis 1,26-27). Numa das últimas páginas está que Deus é amor e que nós conhecemos Deus se nos amamos uns aos outros (1 João 4,7-16). Amando assim é que somos como Deus (não à maneira de Adão e Eva, que queriam ser iguais a Deus ultrapassando o seu limite).

Você se lembra do “homem vitruviano”, aquele bell’uomo que Da Vinci desenhou, de braços abertos no meio de um círculo, para mostrar como todas as suas proporções são geometricamente perfeitas? É até bonito, bonito demais para ser verdadeiro... Mas, ao lado desse, eu imagino determinado outro, também de braços abertos, pregado numa cruz. Este foi verdadeiro.

Não podemos pensar nossa sociedade sem o ser humano, isto é, cada pessoa. As máquinas, os robôs nunca vão dar conta da tarefa humana, que não é somente executar ações cuja origem lhe escapa, mas pensar, amar, doar-se. Isso tem de ser implantado nas atitudes, desde o início da educação, ou seja, desde o primeiro dia de vida.

Johan KoningsJohan Konings nasceu na Bélgica em 1941, onde se tornou Doutor em Teologia pela Universidade Católica de Lovaina, ligado ao Colegio para a América Latina (Fidei Donum). Veio ao Brasil, como sacerdote diocesano, em 1972. Foi professor de exegese bíblica na Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre (1972-82) e na do Rio de Janeiro (1984). Em 1985 entrou na Companhia de Jesus (jesuítas) e, desde 1986, atua como professor de exegese bíblica na FAJE - Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, em Belo Horizonte, onde recebeu o título de Professor Emérito em 2011. Participou da fundação da Escola Superior Dom Helder Câmara. 

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