terça-feira, 30 de setembro de 2014

Hong Kong evoca o espírito de Tiananmen

Centenas de ativistas, trabalhadores e sindicalistas continuam manifestações no centro da cidade.

Por Pablo Wang* 

Para o governo local de Hong Kong, saiu pela culatra a permissão concedida à polícia para usar gás lacrimogêneo e gás de pimenta contra os manifestantes pró-democracia no último domingo (28). Nesta segunda-feira (29), os desafiadores, muito mais manifestantes que nos dias anteriores – 100.000 segundo os organizadores – ocuparam as principais vias da cidade. Mas quase sem presença de forças anti-motim, por ordem do chefe do Executivo, Leung Chun-Ying. Uma vitória para os cidadãos, ainda revoltados com o que consideram um uso desproporcional da força, mas que também declaravam sua satisfação por ter conseguido tomar as ruas, evocando o espírito da praça do Tiananmen em 1989. Naquela ocasião, tanques chegaram a ser usados na dura repressão contra os protestos massivos em Pequim.

O ambiente era muito diferente das tensões dos dias anteriores. Milhares de hongkoneses, em sua maioria jovens, lotaram as ruas no centro da ex-colônia britânica em atitude festiva. Alguns tinham passado a noite ali, dormindo no chão. Muitos haviam trazido sanduíches e bebidas, e se sentavam sobre o asfalto em uma espécie de romaria laica. Outros, os mais próximos à sede do Governo local – onde ocorreram os piores confrontos com a polícia – sem espaço para sentar-se, permaneciam em pé enquanto gritavam em coro. Muitos reconheciam que não teriam ido se não tivesse havido repressão policial.

É o que diziam Jackie, um estudante de 21 anos, e sua amiga Cary, de 20, que exigiam aos gritos a renúncia de Leung. “Vimos pela televisão a violência da polícia e ficamos indignados, sentimos que tínhamos que vir. O Governo de Hong Kong nunca se dignou responder a nossas demandas e agora usa a violência. Vamos vir até que nos escute”, afirmavam.

Os manifestantes estão perfeitamente organizados. Estabeleceram postos de primeiros socorros, numerosos pontos de fornecimento gratuito de comida, bebidas – imprescindíveis na aglomeração sob temperaturas de mais de 30 graus – e os produtos básicos para enfrentar as bombas de gás da polícia: toalhas, plásticos, máscaras... Muitos voluntários levam sacos de lixo para recolher cuidadosamente qualquer desperdício. O lixo é separado para reciclagem. Os gramados com o aviso “não pise” permanecem imaculados. Apesar da multidão, ninguém pisa nem joga ali uma garrafa vazia.

A figura mais impopular é a de Leung. “Leung Chun-Ying, renuncie já!”, é o grito mais entoado na concentração, por milhares e milhares de vozes em uníssono. Uma máscara gigante do chefe do Governo com dentes pontiagudos recebe as maiores vaias da noite. Alguém, com um macabro senso de humor, criou diante de um ônibus transformado em posto de primeiros socorros um altar que na cultura chinesa se reserva aos mortos, com velas, incenso e oferendas de frutas e, no lugar de honra, um retrato do chefe do Executivo sob o lema “Vergonha, Leung”.

Os manifestantes não só não se retiraram, como se multiplicaram depois da ação policial de domingo

O protesto, que até domingo se restringia a uma área limitada e relativamente separada do tráfego do centro da ilha de Hong Kong, estendeu-se depois da repressão de domingo não só por uma ampla zona do distrito político e financeiro, mas também a dois dos principais núcleos comerciais e turísticos do território autônomo, Causeway e Mong Kok, na península de Kowloon.

“Nunca esperamos tanta participação. Não confiamos o suficiente nas pessoas”, declara o professor universitário Chan Kin-Man, um dos cofundadores do movimento civil Occupy Central with Peace and Love (Ocupar Central com Paz e Amor), que convocou a manifestação. Segundo ele, a chave do êxito do movimento foi que os manifestantes não só não se retiraram, como se multiplicaram depois da ação policial de domingo. Essa inesperada resposta da população levou o chefe do Executivo local a mudar de estratégia. “Uma dureza ainda maior teria significado declarar estado de exceção e, possivelmente, abrir o caminho para uma intervenção das tropas do Exército Popular de Liberação (que conta com um quartel no território). Provavelmente consultou Pequim e lhe disseram que não”, considera Chan.

A origem dos protestos está na proposta de reforma eleitoral para a ex-colônia que Pequim anunciou em 29 de agosto. Embora – tal como Pequim prometeu há anos – introduza o voto universal, impõe uma série de condições que, segundo o movimento pró-democracia, visam a garantir que os candidatos contem com a aprovação de Pequim. Em resposta, Occupy Central proclamou “o começo de uma era de desobediência civil”. Há uma semana os movimentos estudantis estão em greve. na sexta-feira, uma manifestação na sede do Governo autônomo terminou com a retirada de 150 jovens. Ao todo 74 pessoas foram detidas em protestos que se prolongaram por todo o fim de semana e que levaram o Occupy Central a adiantar o começo de sua campanha para exigir mais democracia.

A data marcada em todos os calendários é quarta-feira, 1º de outubro, dia nacional da China e data original do começo da campanha de desobediência civil do Occupy. Chan considera necessário manter as mobilizações até então. O Governo local anunciou na segunda-feira a suspensão do show de fogos de artifício previsto para esse dia. “É um reconhecimento de fraqueza. Nós, em troca, estamos ganhando impulso. Temos que aproveitar”, diz o professor.

As autoridades chinesas bloqueiam o Instagram

O Governo da China bloqueou o Instagram em Hong Kong como consequência dos protestos pró-democracia dos últimos dias. Segundo informação do Twitter colhida pela Reuters, as publicações na rede social que mostram a polícia lançando bombas de gás lacrimogêneo contra os manifestantes foram o motivo pelo qual as autoridades chinesas proibiram o acesso.

Concretamente, a hashtag do movimento Occupy Central, já censurada no Weibo, a versão chinesa de um híbrido entre Twitter e Facebook, foi bloqueada no Instagram em várias cidades do país além de Hong Kong. O Governo não emitiu declarações a respeito.
*Pablo Wang é correspondente em Hong Kong do El País, onde esta reportagem foi publicada originalmente.

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