10/11/2014 | domtotal.com
Foram estas mãos que eu segurei momentos antes que o caixão dele fechasse.
Por Ricardo Soares*
Há tempos dos quais poucas lembranças ficam. Vagos borrões, luzes difusas de abajures múltiplos. Nem sei direito porque julgo que essas lembranças possam ajudar ou dar alento a quem precisa. Na verdade, já na meia idade, me sinto prenhe de uma narrativa incomum. Minha infância terá sido a mesma infância que foi percebida por parentes próximos? Que percepção tenho de meu próprio passado agora que ele se mistura a tantas outras impressões que sequer sei se são minhas?
As unhas da minha mão direita por exemplo. Olho para elas e não as reconheço. Sequer reconheço as minhas mãos grandes de dedos finos, dedos de pianista, como dizia alguém perdido nas brumas do tempo. Minhas unhas são arredondadas e bem feitas, compõe um conjunto harmonioso com minhas mãos que são macias. Mãos que jamais pegaram num batente pesado de enxadas e vassouras grossas, mãos acostumadas a alisar bons caminhos, mãos que descascaram poucas cebolas e laranjas, mãos de trabalhador indoor, de gente que mofou em escritórios não segurando panelas e nem chaleiras ferventes.
Olho para essas mãos que separam o meu rosto do sol ardente, as mãos que me protegem da luz e do medo, mãos que me dão sombra e alento e penso no quanto elas gesticularam, fizeram acenos. O quanto essas mãos levantaram para esboçar uma agressão ou um gesto de carinho, o quando elas me guiaram no escuro de dias claros.
Estranhamente não as reconheço porque não são as mãos de minha infância. Muito embora eu saiba que elas estiveram nas minhas muitas infâncias. Me amparando, me acudindo, até me castigando. Se não as reconheço é porque as minhas mãos eram então miúdas amparadas nessas mãos graúdas que na verdade são sim as minhas mãos mas também são as mãos do meu pai. Foram elas que eu segurei momentos antes que o caixão dele fechasse. Era como se tudo nele tivesse morrido, menos as suas mãos que continuavam ali fortes, tênues, delgadas, saudáveis, mais vivas do que nunca. Por isso foram elas que eu segurei com tanta força pra impedir que meu pai partisse.
Há tempos dos quais poucas lembranças ficam. Vagos borrões, luzes difusas de abajures múltiplos. Nem sei direito porque julgo que essas lembranças possam ajudar ou dar alento a quem precisa. Na verdade, já na meia idade, me sinto prenhe de uma narrativa incomum. Minha infância terá sido a mesma infância que foi percebida por parentes próximos? Que percepção tenho de meu próprio passado agora que ele se mistura a tantas outras impressões que sequer sei se são minhas?
As unhas da minha mão direita por exemplo. Olho para elas e não as reconheço. Sequer reconheço as minhas mãos grandes de dedos finos, dedos de pianista, como dizia alguém perdido nas brumas do tempo. Minhas unhas são arredondadas e bem feitas, compõe um conjunto harmonioso com minhas mãos que são macias. Mãos que jamais pegaram num batente pesado de enxadas e vassouras grossas, mãos acostumadas a alisar bons caminhos, mãos que descascaram poucas cebolas e laranjas, mãos de trabalhador indoor, de gente que mofou em escritórios não segurando panelas e nem chaleiras ferventes.
Olho para essas mãos que separam o meu rosto do sol ardente, as mãos que me protegem da luz e do medo, mãos que me dão sombra e alento e penso no quanto elas gesticularam, fizeram acenos. O quanto essas mãos levantaram para esboçar uma agressão ou um gesto de carinho, o quando elas me guiaram no escuro de dias claros.
Estranhamente não as reconheço porque não são as mãos de minha infância. Muito embora eu saiba que elas estiveram nas minhas muitas infâncias. Me amparando, me acudindo, até me castigando. Se não as reconheço é porque as minhas mãos eram então miúdas amparadas nessas mãos graúdas que na verdade são sim as minhas mãos mas também são as mãos do meu pai. Foram elas que eu segurei momentos antes que o caixão dele fechasse. Era como se tudo nele tivesse morrido, menos as suas mãos que continuavam ali fortes, tênues, delgadas, saudáveis, mais vivas do que nunca. Por isso foram elas que eu segurei com tanta força pra impedir que meu pai partisse.
*Ricardo Soares é escritor, diretor de TV, roteirista e jornalista. Foi cronista dos jornais "Diario do Grande ABC", "Jornal da Tarde" e "O Estado de S.Paulo".
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