18/11/2014 | domtotal.com
Como brasileiro, na Holanda, digo: adaptação nunca, emancipação sempre.
Por Lev Chaim*
Foi uma pequena frase das primeiras páginas do livro de Pascal Mercier, pseudônimo do filósofo suíço-alemão Peter Bieri (“O silêncio de Perlmann”), o mesmo do “Trem noturno para Lisboa”, que me fez voltar a pensar seriamente nos pré-julgamentos: “Os outros são realmente outros. Outros”.
Cientificamente ou geneticamente, ele tem razão: cada um tem o seu próprio DNA, inclusive gêmeos “idênticos”, provenientes de um mesmo óvulo. Mas, socialmente falando, existem pessoas “educadas”, “bem-educadas” e “mal-educadas”. Coloquei entre aspas porque estes conceitos podem também esbarrar em diferenças culturais de um povo para outro.
Imaginei as mudanças na sociedade holandesa desde os anos 50, durante a geração “power-flower” da década de sessenta e até hoje, levando-se em conta o 11 de setembro de 2001, quando ocorreram os ataques terroristas às torres gêmeas de Nova Iorque. Como já moro aqui há mais de vinte anos, sinto-me capaz de tais elucubrações. Dos povos do norte da Europa, os holandeses são tidos como os mais abertos e espontâneos.
Mas após aquela frase do escritor e filósofo Pascal Mercier e de um artigo do jornal holandês NRC Handelsblad, comecei a duvidar de todos os adjetivos dados a determinados povos, tal qual o de “mal-educados” para os holandeses. O título da matéria: “Polidez é uma coisa desconhecida para a maioria dos holandeses”. As minhas ideias pré-concebidas começaram a cair por terra. Até ai, tudo bem. Isto faz a gente exercer a própria humanidade e transpor fronteiras.
No artigo, do alemão Christoph Driessen, que morou muitos anos na Holanda e em outros países europeus, estava escrito que desde os anos 60, os holandeses não julgavam mais necessário respeitar normas e valores para um bom convívio em sociedade. Ele disse que se alguém lhe perguntasse se os holandeses são “mal-educados”, infelizmente, teria que dizer que “sim”.
Driessen contou que uma vez, em seu aniversário, uma amiga holandesa ligou dizendo que não viria a sua festa porque não tinha vontade e que preferia fazer uma caminhada. Em outro país, complementou o autor, as pessoas dariam qualquer desculpa, mas nunca diriam assim, na bucha. Se alguém estiver pensando que esta seja uma forma de sinceridade e mereça ser apreciada e admirada, enganou-se redondamente, enfatizou o autor. O que eu também acho uma tremenda falta de educação e consideração pelo amigo e pelas formas convencionais ocidentais de se tratar uma pessoa, especialmente em seu aniversário.
Este dito comportamento mal-educado do holandês se deve principalmente à duas coisas, dizem alguns: ao Calvinismo, embutido na forma do Estado Holandês, e ao terrorismo. O Calvinismo, incorporado no Estado desde os séculos 17 e 18, acabou dando prioridade à forma mais direta e reta de se falar, sem qualquer tipo de rodeio ou polidez. E o terrorismo, com a diversificação étnica e cultural da sociedade holandesa, acabou por gerar mais atrito entre as pessoas. A paciência foi para as calendas gregas e o bom entendimento passou para o segundo plano.
Mas, ai veio a surpresa. Ao finalizar o artigo, Driessen disse que quando um holandês se comporta de forma amigável, educada, é porque tudo está mesmo vindo do coração. Ele acrescentou ainda que esta é a melhor de todas as formas possíveis de cortesia, já que vem de dentro, ou seja: o holandês, de um modo geral, não é “mal-educado”, mas verdadeiro, o que pode, eventualmente, deixar o seu coração à mostra. Não fiquei contente com esta divagação do alemão que, no início, parecia criticar e terminou por fazer um grande elogio.
Como brasileiro, na Holanda, digo: adaptação nunca, emancipação sempre. Em outras palavras, nunca serei um holandês, mas posso trazer coisas boas para esta sociedade, desde que faço tudo aquilo que todos fazem: ganhar o próprio sustento, ter amigos e ser suficientemente polido. Querer que eu me torne um holandês da gema é impossível. Tenho uma história própria, uma língua que me foi falada desde bebê, histórias de família que, de uma forma ou de outra, formam uma segunda pele. Como a primeira, essa segunda camada epidérmica também nunca poderá ser arrancada, por mais que alguém queira. Se acontecer, perde-se a própria identidade. Tal qual perguntava a minha saudosa tia Sinhá: gatinho, que nasce na fornalha, é gato ou biscoito?
Por isto é que, muitas vezes, critico as discussões na Holanda sobre a forma de integração de novos imigrantes, principalmente muçulmanos, justamente após os ataques de 11 de setembro à Nova Iorque. Muitos no país não conseguem separar uma coisa da outra: muçulmano e terrorista. Assim, os bons acabam pagando pelos atos insanos de uma minoria maluca e bye bye qualquer tipo de solidariedade e compreensão de um para com o outro.
A desinformação psicológica, histórica e filosófica da população acabou por gerar comportamentos discutíveis, estranhos, que, quando aumentados pelas lentes da televisão e outros meios de comunicação, acabam por chocar ainda mais esta mesma sociedade. Eles se esquecem que nunca podem mudar de todo uma pessoa. Exigir que ela fale a sua língua – nada mais justo, já que ela vive aqui; que ela trabalhe para o seu próprio sustento e não viva de benefícios sociais do governo, entre outras coisas, tudo bem. Mas, exigir que ela deixe de falar a própria língua, não cozinhe mais receitas da terra distante, não conte aos filhos e netos histórias de sua terra natal são coisas impossíveis. Trata-se simplesmente de um erro de avaliação, de uma política imbecil, explorada por políticos populistas, à procura do voto fácil e ignorante.
O ex-deputado e ex-prefeito da cidade holandesa de Groningen, no norte do país, Jacques Wallage, homem culto e polido, coisa rara na política de hoje em dia, contou a sua experiência com um grupo minoritário do bairro de Manhattan, em Nova Iorque. Todos os dias, esse grupo de judeus ortodoxos da Europa Oriental, que já havia emigrado para os Estados Unidos há mais de vinte anos, fazia uma horinha extra à beira do lago. Curioso, ele perguntou: “Por que vocês se reúnem aqui quase todos os dias?”. Um deles, adiantando-se, respondeu: “Os nossos corações já estão na América, mas ainda estamos a espera de nossas almas”.
Como disse Wallage, esses judeus nunca perturbaram a vida da comunidade nova-iorquina simplesmente porque ainda estavam à espera de suas almas, como também nenhum político do país resolveu explorar o fato e acusá-los de falta de patriotismo para com a nação que os recebeu tão bem. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Esta era uma maneira deles dizerem que, apesar de estarem contentes em viver nos Estados Unidos, eles ainda se lembravam de seus tempos de infância e juventude, quando ainda viviam no leste europeu, aos lado dos pais, irmãos, primos e tudo mais. Só um louco poderia considerar isto uma forma de deslealdade para com os Estados Unidos.
Foi uma pequena frase das primeiras páginas do livro de Pascal Mercier, pseudônimo do filósofo suíço-alemão Peter Bieri (“O silêncio de Perlmann”), o mesmo do “Trem noturno para Lisboa”, que me fez voltar a pensar seriamente nos pré-julgamentos: “Os outros são realmente outros. Outros”.
Cientificamente ou geneticamente, ele tem razão: cada um tem o seu próprio DNA, inclusive gêmeos “idênticos”, provenientes de um mesmo óvulo. Mas, socialmente falando, existem pessoas “educadas”, “bem-educadas” e “mal-educadas”. Coloquei entre aspas porque estes conceitos podem também esbarrar em diferenças culturais de um povo para outro.
Imaginei as mudanças na sociedade holandesa desde os anos 50, durante a geração “power-flower” da década de sessenta e até hoje, levando-se em conta o 11 de setembro de 2001, quando ocorreram os ataques terroristas às torres gêmeas de Nova Iorque. Como já moro aqui há mais de vinte anos, sinto-me capaz de tais elucubrações. Dos povos do norte da Europa, os holandeses são tidos como os mais abertos e espontâneos.
Mas após aquela frase do escritor e filósofo Pascal Mercier e de um artigo do jornal holandês NRC Handelsblad, comecei a duvidar de todos os adjetivos dados a determinados povos, tal qual o de “mal-educados” para os holandeses. O título da matéria: “Polidez é uma coisa desconhecida para a maioria dos holandeses”. As minhas ideias pré-concebidas começaram a cair por terra. Até ai, tudo bem. Isto faz a gente exercer a própria humanidade e transpor fronteiras.
No artigo, do alemão Christoph Driessen, que morou muitos anos na Holanda e em outros países europeus, estava escrito que desde os anos 60, os holandeses não julgavam mais necessário respeitar normas e valores para um bom convívio em sociedade. Ele disse que se alguém lhe perguntasse se os holandeses são “mal-educados”, infelizmente, teria que dizer que “sim”.
Driessen contou que uma vez, em seu aniversário, uma amiga holandesa ligou dizendo que não viria a sua festa porque não tinha vontade e que preferia fazer uma caminhada. Em outro país, complementou o autor, as pessoas dariam qualquer desculpa, mas nunca diriam assim, na bucha. Se alguém estiver pensando que esta seja uma forma de sinceridade e mereça ser apreciada e admirada, enganou-se redondamente, enfatizou o autor. O que eu também acho uma tremenda falta de educação e consideração pelo amigo e pelas formas convencionais ocidentais de se tratar uma pessoa, especialmente em seu aniversário.
Este dito comportamento mal-educado do holandês se deve principalmente à duas coisas, dizem alguns: ao Calvinismo, embutido na forma do Estado Holandês, e ao terrorismo. O Calvinismo, incorporado no Estado desde os séculos 17 e 18, acabou dando prioridade à forma mais direta e reta de se falar, sem qualquer tipo de rodeio ou polidez. E o terrorismo, com a diversificação étnica e cultural da sociedade holandesa, acabou por gerar mais atrito entre as pessoas. A paciência foi para as calendas gregas e o bom entendimento passou para o segundo plano.
Mas, ai veio a surpresa. Ao finalizar o artigo, Driessen disse que quando um holandês se comporta de forma amigável, educada, é porque tudo está mesmo vindo do coração. Ele acrescentou ainda que esta é a melhor de todas as formas possíveis de cortesia, já que vem de dentro, ou seja: o holandês, de um modo geral, não é “mal-educado”, mas verdadeiro, o que pode, eventualmente, deixar o seu coração à mostra. Não fiquei contente com esta divagação do alemão que, no início, parecia criticar e terminou por fazer um grande elogio.
Como brasileiro, na Holanda, digo: adaptação nunca, emancipação sempre. Em outras palavras, nunca serei um holandês, mas posso trazer coisas boas para esta sociedade, desde que faço tudo aquilo que todos fazem: ganhar o próprio sustento, ter amigos e ser suficientemente polido. Querer que eu me torne um holandês da gema é impossível. Tenho uma história própria, uma língua que me foi falada desde bebê, histórias de família que, de uma forma ou de outra, formam uma segunda pele. Como a primeira, essa segunda camada epidérmica também nunca poderá ser arrancada, por mais que alguém queira. Se acontecer, perde-se a própria identidade. Tal qual perguntava a minha saudosa tia Sinhá: gatinho, que nasce na fornalha, é gato ou biscoito?
Por isto é que, muitas vezes, critico as discussões na Holanda sobre a forma de integração de novos imigrantes, principalmente muçulmanos, justamente após os ataques de 11 de setembro à Nova Iorque. Muitos no país não conseguem separar uma coisa da outra: muçulmano e terrorista. Assim, os bons acabam pagando pelos atos insanos de uma minoria maluca e bye bye qualquer tipo de solidariedade e compreensão de um para com o outro.
A desinformação psicológica, histórica e filosófica da população acabou por gerar comportamentos discutíveis, estranhos, que, quando aumentados pelas lentes da televisão e outros meios de comunicação, acabam por chocar ainda mais esta mesma sociedade. Eles se esquecem que nunca podem mudar de todo uma pessoa. Exigir que ela fale a sua língua – nada mais justo, já que ela vive aqui; que ela trabalhe para o seu próprio sustento e não viva de benefícios sociais do governo, entre outras coisas, tudo bem. Mas, exigir que ela deixe de falar a própria língua, não cozinhe mais receitas da terra distante, não conte aos filhos e netos histórias de sua terra natal são coisas impossíveis. Trata-se simplesmente de um erro de avaliação, de uma política imbecil, explorada por políticos populistas, à procura do voto fácil e ignorante.
O ex-deputado e ex-prefeito da cidade holandesa de Groningen, no norte do país, Jacques Wallage, homem culto e polido, coisa rara na política de hoje em dia, contou a sua experiência com um grupo minoritário do bairro de Manhattan, em Nova Iorque. Todos os dias, esse grupo de judeus ortodoxos da Europa Oriental, que já havia emigrado para os Estados Unidos há mais de vinte anos, fazia uma horinha extra à beira do lago. Curioso, ele perguntou: “Por que vocês se reúnem aqui quase todos os dias?”. Um deles, adiantando-se, respondeu: “Os nossos corações já estão na América, mas ainda estamos a espera de nossas almas”.
Como disse Wallage, esses judeus nunca perturbaram a vida da comunidade nova-iorquina simplesmente porque ainda estavam à espera de suas almas, como também nenhum político do país resolveu explorar o fato e acusá-los de falta de patriotismo para com a nação que os recebeu tão bem. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Esta era uma maneira deles dizerem que, apesar de estarem contentes em viver nos Estados Unidos, eles ainda se lembravam de seus tempos de infância e juventude, quando ainda viviam no leste europeu, aos lado dos pais, irmãos, primos e tudo mais. Só um louco poderia considerar isto uma forma de deslealdade para com os Estados Unidos.
*Lev Chaim é jornalista, colunista, publicista da FalaBrasil e trabalhou 20 anos para a Radio Internacional da Holanda, país onde mora até hoje. Ele escreve todas as terças-feiras para o DomTotal.
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