

O que poderia doer mais? A dor de ser separado de tudo que lhe era querido e familiar, encurralado, preso como bicho bruto? Quantas famílias separadas, quantas mães tiveram seus filhos arrancados ainda mamando no peito?
Passar meses dentro de porões fétidos das galés, de ar nauseante, com as vergonhas à mostra, convivendo com moribundos devido à falta de água e de pão, que ainda não totalmente mortos eram jogados ao mar que deixava para trás o continente africano em sentido ao novo mundo. As lágrimas já haviam seção, mais salgadas do aquele mar que os levavam a outros destinos, para outras realidades.
O que poderia doer mais? Desembarcados, simples sombras do que já haviam sido, objetos demonstrados em praça pública, sem direito a pudor, com dentes arreganhados, músculos apalpados, virgindades devassadas, cobiçados, comprados por quem oferecesse mais aos mercadores.
Levados pelos novos senhores, homens abastados que compravam peças angolanas, do Congo, Moçambique ou Tanzânia, príncipes e princesas de outras terras, de outros tempos, transformados em meros espécimes a serem avaliados, capturados em guerras com tribos rivais.
As mãos que minavam sangue de tantas horas de manejo na enxada cavando o chão duro, ou do facão cortando cana-de-açúcar? O trabalho exaustivo, de sol a sol, sem descanso, ou a perseguição do Sinhozinho à jovem ainda pueril e vistosa, ali na frente de todos na senzala?
Na casa grande a Sinhá remoía seu ódio pela negra imunda que se espojava com o marido, com o dono de tudo e de todos ali, inclusive dela, que não tinha o direito de questionar, mas que para se vingar podia mandar arrancar os dentes daquela negrinha, poderia marcá-la a ferro, cortar-lhe os bicos do peito, tendo apenas cuidado em não matá-la, pois não haveria de desperdiçar mão-de-obra.
Quantas mães mataram seus filhos recém-nascido com as próprias mãos para que eles escapassem do destino que os aguardava? Com as mãos tintas de sangue rasgavam o chão duro para enterrarem aquilo que tinha crescido sem permissão dentro de si, como lembrança amarga de violações de corpos ainda infantis pelos donos das fazendas que saciavam a lascívia diante de expressões de dor e de humilhação.
Quantos tentaram fugir e foram recapturados por capitães-do-mato, mercenários que não atendiam ao clamor de escravos fujões? Depois vinham as chicotadas dilacerantes que sem piedade cortavam a carne em talhos que pingavam sangue, amarrados ao tronco, castigados até desmaiarem ou até que o feitor cansasse o braço. Para as feridas tinham a salmoura que fechava a carne tantas vezes marcada por outros vergões.
Feitores e senhores por vezes eram apanhados, enforcados ou degolados, capturados em emboscadas, açoitados em rodas de capoeira, durante batuques raramente permitidos, em isoladas tentativas de liberdade.
Liberdade essa raramente comprada com trabalho alugado, por alguns que tinham a sorte de trabalharem para se sustentarem e angariarem dinheiro à custa de muitas privações para conseguirem de seus senhores a tão almejava carta de alforria.
Para tantos outros, a chance de liberdade eram os quilombos, os paraísos sonhados dentro das correntes, das amarras, das máscaras de ferro fundido, das argolas.
O que mais doía dentro de tudo isso? Ter que se subjugar, aprender a obedecer, suportar olhares superiores, ter medo de apanhar? Séculos de escravidão, de revoltas, de torturas, acabaram-se simbolicamente com a assinatura de uma lei chamada de Áurea, mas a divisão ainda persiste, a desigualdade existe, é real, palpável, e ainda me pergunto: Quando realmente a cor da pele deixará de ser importante nesse Brasil mestiço, cafuzo, mameluco, mulato, com pequenas pinceladas de genes europeus? Que a história futura nos responda.
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