quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Hoje, Grandes Sertões não iriam a Paris

11/12/2014  |  domtotal.com

Imagino, sem exagero, o destino da obra de Guimarães Rosa se fosse concebida e escrita nos dias atuais.

Por Ricardo Soares*

Imagine uma história que nunca foi imaginada, sequer ouvida, mas que precisássemos ouvir. Uma história para ser contada e recontada, repisada, espalhada que nem brasa de fim de fogueira. Uma história que incendiasse os campos, os pastos devastados pelo agronegócio, os pampas das carnes, as planícies de soja, um dia florestas que foram devastadas.

Imagine que essa história contada com nuances e palavrórios muito específicos de uns grotões de Minas fosse uma espécie de marco fundador e preservador da identidade nacional. Imagina que seu enredo de força e de medo, de avistamentos e grilos, de cavalos cansados e tardes misteriosas, de riachos secos e banhos frios, de primitivas vegetações e de grandes sertões fosse nos guiar no rumo de uma literatura que não é um mera estaca de histórias lineares que começam e simplesmente terminam. Imagina que essa história fosse uma própria reinvenção de palavra e que fosse gestada nos dias de hoje.

Imagine que seu autor fosse um circunspecto burocrata ou um médico discreto, ou um diplomata de escalão intermediário. Imagine que esse personagem, contido e introspectivo , não tivesse acesso aos esquadrões de editores midiáticos que determinam o que deve ou não ser lido e o que deve ou não ir para os salões elegantes representar a literatura nacional. Imagine esse autor batendo de porta em porta e levando um 'não', muitos 'poréns' e vários 'todavias' para recusar o seu livro que ele sabe ser uma obra prima. Imagina a frustração desse próprio autor e das gerações futuras se seu belíssimo trabalho morresse com ele dentro de uma gaveta que um dia seria roída pelos cupins.

Imagino, sem exagero, que esse seria o destino de um "Grande Sertão Veredas" ou mesmo de um "Sagarana" fosse concebido e escrito nos dias de hoje e se seu autor se desse ao trabalho de procurar um editor audaz, ousado, de um padrão distinto da maioria que está preocupada apenas com holofotes, mídia, toscas adaptações para nosso fraco cinema . Editores voltados apenas para o "deus mercado" e suas exigências ferozes diante da lógica capitalista. Vender, vender, vender. Uma vez best seller, best seller até morrer.

Guimarães Rosa, até onde se sabe, era um autor discreto, um homem discreto. Não o imagino uivando nas areias de Copacabana ao ter os seus originais recusados hoje em dia. Nem o imagino esperneando na mídia contra isso. Imagino só que seria um autor amargurado em busca de dar vazão ao seu talento. Um homem que tomaria chá no fim da tarde e olharia para a miséria intelectual do nosso tempo com um leve olhar de superioridade sabendo que os que perderiam eram seus contemporâneos ao não terem acesso à sua obra.

Pois, hoje, imagino que sorte teve o Rosa que nasceu, viveu e morreu em um outro tempo onde as grandes sacadas literárias eram percebidas assim que eram levadas aos editores antenados de então. Hoje, morreriam à mingua sem ter sequer a chance de pegar a carona num Boeing com uma maioria de escritores medíocres que nos representarão em Paris em 2015. Toda lista é, sim, discutível mas essa, recentemente divulgada para nos representar, deixa de fora os verdadeiros inventivos da palavra. Voa o mercado. Por essa lógica o Rosa ficaria aqui aterrissado.
*Ricardo Soares é escritor, diretor de TV, jornalista e roteirista. Autor entre outros do romance “Cinevertigem” e dos infanto-juvenis "Falta de Ar", "O Brasil é feito por nós ?” e “Valentão”.

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