05/12/2014 | domtotal.com
Apurando os ouvidos, escuta-se sempre alguém atravessando os olivais, de volta a casa.
Por Fernando Fabbrini*
Pitigliano é uma cidadezinha a poucos quilômetros do mar Tirreno, encarrapitada num rochedo desde o tempo dos etruscos. Lá do alto, no verão, principalmente ao amanhecer, quando sopra uma brisa fresca, é bonito de se olhar. Avista-se a paisagem típica da maremma toscana, com seus campos de girassóis e ciprestes pontudos recortando o horizonte. Apurando os ouvidos, escuta-se sempre alguém atravessando os olivais, de volta a casa, esgoelando uma canção qualquer.
Pitigliano era apenas mais um povoado no caminho daqueles artistas vindos de L’Áquila, Abruzzo, num certo verão do século dezenove. Chegaram para ficar duas, três, quantas semanas a pequena cidade pudesse sustentá-los com modesta bilheteria. Eram cantores, intérpretes de ópera, grandes e vaidosos narizes empoados. As roupas tinham remendos de verdade, o jantar nem sempre era garantido, mas eles não escondiam o orgulho e a alegria de viver da arte.
Toda trupe tem uma grande estrela e, neste grupo, os refletores voltavam-se para Rosa. A ela estavam reservadas as melhores árias, os figurinos novos, os sapatos menos gastos. Além da voz doce e marcante, Rosa tinha outros atributos. Era uma mulher bela, altiva e naturalmente sedutora - qualidades que, no palco ou fora dele, atraiam olhares fixos masculinos e cutucões irados de esposas enciumadas.
E foi por causa de Rosa, com certeza, que o pequeno Teatro Salvini na praça principal de Pitigliano se encheu no sábado de estreia. Ali estava o prefeito, o padre, os comerciantes ricos da cidade, os rapazes amantes do bel canto. Rosa já conhecia aquelas caras comuns, de tantos teatros iguais, de tantas cidades ao longo da estrada. Mas alguém, lá na última fila, chamou-lhe a atenção. Era um homem alto e bonito, de olhos azuis - porém um homem rude, com certeza. Seu terno branco mal cortado, a barba por fazer e a gravata torta assim o revelavam.
Que coisa engraçada! O homem carregava um buquê de flores do campo, um amarrado colorido e despojado como ele próprio. Para surpresa de Rosa, ao final do espetáculo, o homem furou a fila de cumprimentos, aproximou-se sem dizer nada, entregou a ela o mazzolino di fiori – e desapareceu.
No domingo, lá estava ele de novo, na última fila, esperando os aplausos finais para entregar mais flores àquela mulher que o havia fascinado desde que a viu chegar a Pitigliano, na carroça mambembe dos artistas.
E o mesmo ritual se repetiu ao longo de todos os dias da temporada, semanas a fio, sem faltar. Religiosamente, sempre em silêncio e com um sorriso discreto, Paolo levava as flores de seu modesto jardim para Rosa.
Até que, na hora de desmontar os cenários e partir, Rosa sentiu que não poderia mais viver sem aquele carinho diário e sem os olhos azuis que a faziam estremecer. Desprezou conselhos, enfrentou a ira do seu tio empresário, abandonou o grupo e a carreira artística. Ficou ali, casou-se com Paolo, indo morar numa casinha humilde rodeada de flores.
Paolo Fabbrini e Rosa Amicangeli só deixaram Pitigliano quando o trabalho rareou e a fome passou a assombrar aquela casa. Ao lado de muitas famílias que sonhavam com uma vida melhor, embarcaram em Gênova no navioEspagne com os filhos Lorenzo, Giuseppe, Adelaide e Matilde rumo a um país distante chamado Brasil. Mas essa já é outra história.
Pitigliano era apenas mais um povoado no caminho daqueles artistas vindos de L’Áquila, Abruzzo, num certo verão do século dezenove. Chegaram para ficar duas, três, quantas semanas a pequena cidade pudesse sustentá-los com modesta bilheteria. Eram cantores, intérpretes de ópera, grandes e vaidosos narizes empoados. As roupas tinham remendos de verdade, o jantar nem sempre era garantido, mas eles não escondiam o orgulho e a alegria de viver da arte.
Toda trupe tem uma grande estrela e, neste grupo, os refletores voltavam-se para Rosa. A ela estavam reservadas as melhores árias, os figurinos novos, os sapatos menos gastos. Além da voz doce e marcante, Rosa tinha outros atributos. Era uma mulher bela, altiva e naturalmente sedutora - qualidades que, no palco ou fora dele, atraiam olhares fixos masculinos e cutucões irados de esposas enciumadas.
E foi por causa de Rosa, com certeza, que o pequeno Teatro Salvini na praça principal de Pitigliano se encheu no sábado de estreia. Ali estava o prefeito, o padre, os comerciantes ricos da cidade, os rapazes amantes do bel canto. Rosa já conhecia aquelas caras comuns, de tantos teatros iguais, de tantas cidades ao longo da estrada. Mas alguém, lá na última fila, chamou-lhe a atenção. Era um homem alto e bonito, de olhos azuis - porém um homem rude, com certeza. Seu terno branco mal cortado, a barba por fazer e a gravata torta assim o revelavam.
Que coisa engraçada! O homem carregava um buquê de flores do campo, um amarrado colorido e despojado como ele próprio. Para surpresa de Rosa, ao final do espetáculo, o homem furou a fila de cumprimentos, aproximou-se sem dizer nada, entregou a ela o mazzolino di fiori – e desapareceu.
No domingo, lá estava ele de novo, na última fila, esperando os aplausos finais para entregar mais flores àquela mulher que o havia fascinado desde que a viu chegar a Pitigliano, na carroça mambembe dos artistas.
E o mesmo ritual se repetiu ao longo de todos os dias da temporada, semanas a fio, sem faltar. Religiosamente, sempre em silêncio e com um sorriso discreto, Paolo levava as flores de seu modesto jardim para Rosa.
Até que, na hora de desmontar os cenários e partir, Rosa sentiu que não poderia mais viver sem aquele carinho diário e sem os olhos azuis que a faziam estremecer. Desprezou conselhos, enfrentou a ira do seu tio empresário, abandonou o grupo e a carreira artística. Ficou ali, casou-se com Paolo, indo morar numa casinha humilde rodeada de flores.
Paolo Fabbrini e Rosa Amicangeli só deixaram Pitigliano quando o trabalho rareou e a fome passou a assombrar aquela casa. Ao lado de muitas famílias que sonhavam com uma vida melhor, embarcaram em Gênova no navioEspagne com os filhos Lorenzo, Giuseppe, Adelaide e Matilde rumo a um país distante chamado Brasil. Mas essa já é outra história.
*Fernando Fabbrini é roteirista, cronista e escritor, com dois livros publicados. Participa de coletâneas literárias no Brasil e na Itália.
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