quarta-feira, 18 de março de 2015

O diálogo com o Islã é possível?

Núncio emérito no Egito fala das dificuldades sobre o diálogo inter-religioso, nos dias de hoje.

Por Thomas Reese
Considerando-se o grupo Estado Islâmico e os múltiplos conflitos que ocorrem no Oriente Médio, o diálogo com o Islã é possível? Esta foi a pergunta feita por Dom Michael Fitzgerald, núncio emérito no Egito e ex-presidente do Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso.
Na qualidade de membro da Sociedade dos Missionários da África e um estudioso da cultura árabe e islâmica, Fitzgerald é a pessoa particularmente qualificada para discutir este assunto, algo que ele fez numa palestra em 6 de março na Universidade Católica da América, organizada pelo Instituto de Pesquisa Política e Estudos Católicos e pela ONG Africa Faith and Justice Network.
Apesar de ter passado a maior parte de sua vida dialogando com o Islã, Fitzgerald não nega as dificuldades existentes neste tocante. Na citada palestra, ele começa analisando três elementos que tornam difícil o diálogo com certas categorias dos muçulmanos.
Em primeiro lugar, “há uma grande diferença na experiência de Jesus e de Maomé, e portanto na experiência fundante destas duas religiões”, disse. Ambos foram profetas com uma mensagem de conversão ao mundo. Ambos reuniram discípulos em torno de si.
“No entanto, Jesus pregou o Reino de Deus, um reino que não era deste mundo”, explicou Fitzgerald. “A sua mensagem era essencialmente uma mensagem religiosa que, embora estivesse projetada para ter um efeito no comportamento das pessoas neste mundo, poderia ser vivida dentro de qualquer ambiente ou cenário político”.
“A mensagem (de Maomé) também era essencialmente religiosa, o reconhecimento do Deus único contra o politeísmo prevalente, mas ela tinha uma dimensão social, que era liderar a formação de uma nova comunidade ligada não por laços sanguíneos ou lealdade tribal, mas pela religião: a Umma”.
A Umma era tanto uma comunidade religiosa quanto uma comunidade política, e ela pegou nas armas para sobreviver. Maomé foi tanto um profeta como um estadista.
O cristianismo pré-Constantino, por outro lado, era um movimento puramente religioso que não pegou em armas para sobreviver.
“Assim, embora o cristianismo foi, por assim dizer, tomado e usado por entidades políticas, em primeiro lugar pelos bizantinos e, depois, por vários monarcas e legisladores, em essência ele permanece independente de qualquer poder político”, disse Fitzgerald. “Enquanto que o Islã, desde o seu começo como uma comunidade separada, tem sido tanto um grupo político quanto religioso, e poder-se-ia ficar tentado a dizer que o esforço, a luta para defender a própria comunidade (se necessário usando a força das armas), é um componente natural da religião”.
Há uma tendência entre os muçulmanos em olhar de volta para o seu primeiro período, aquele dos Califas Corretamente Guiados, como a época de glória e do verdadeiro Islã. Isto tem inspirado inúmeros movimentos revivacionistas ao longo da história. Jihadistas contra muçulmanos que não praticavam uma versão pura do Islã se tornou comum. A maior parte destes movimentos eram locais e duraram pouco tempo, porém o movimento wahhabita, começado no século XVIII, ainda está entre nós e encontra respaldo na Arábia Saudita.
A atração do califado é o segundo item examinado por Fitzgerald. Ele observa que o Islã se dividiu em facções sunitas e xiitas após a morte de Maomé por causa de divergências a respeito da sucessão.
Os xiitas acreditam que Maomé nomeou Ali, seu primo, como o sucessor. Para os xiitas, cada imã designa o seu sucessor, o qual deve pertencer à família do profeta. Os xiitas creem que havia 12 imãs que seguiam Maomé e que o 12º foi ocultado e retornará no fim dos tempos para realizar um reino de justiça.
Os sunitas acreditam que Maomé não fez nenhuma provisão para a sucessão e, portanto, a sua sucessão seria determinada através de eleição por membros proeminentes da comunidade.
No entanto, apesar destas divisões, o califado durante o período de expansão islâmica e prosperidade atuou como um ponto focal de unidade para os muçulmanos. Isto durou até meados do século X, quando o califado começou a perder a sua importância até que Mustafa Kemal Ataturk finalmente a aboliu em 1924.
Ainda que fosse um ideal atraente, o califado não foi sem um fator predominante na vida do Islã e, com certeza, durante séculos não funcionou como um poder político unificador. O pronunciamento de Abu Bakr al-Baghdadi, de que ele é o califa, foi condenado pelas autoridades muçulmanas. Um destacado estudioso, Yusuf al-Qaradawi, presidente da União Internacional dos Estudiosos Muçulmanos, disse que o título de califa pode “somente ser dado por toda a nação muçulmana”.
O último aspecto que Fitzgerald analisa é a lei da Sharia pela qual a Umma deve se regular. Ele observa que existem quatro fontes para a Sharia: o Corão, a Suna, ou tradição do profeta; a “qiyas”, ou analogia; e o “ijma”, ou consenso entre os estudiosos. Estas múltiplas fontes e a ambiguidade textual lideram o debate e as divergências sobre a Sharia de forma que existem, pelo menos, quatro diferentes escolas de interpretação.
Assim, quando se diz que lei da Sharia será aplicada, a questão é qual Sharia. Quem vai decidir qual tipo a ser aplicado, e quem deve controlar a sua aplicação, certificando-se de que todas as condições foram cumpridas antes que algum juízo seja feito?
Fitzgerald conclui: “Os jihadistas takfiri, que proclamaram um Estado Islâmico onde a lei da Sharia será observada sob a orientação de um califa autodesignado, não estão mantendo a tradição islâmica, independentemente do que digam”. Ele disse acreditar que o diálogo é impossível com tais pessoas “que estão convencidas de que detêm a verdade e que, portanto, não precisam escutar os outros”.
Mas o diálogo com os demais muçulmanos é possível, acrescentou. Fitzgerald apontou quatro tipos de diálogos possíveis e citou o Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-Religioso: o diálogo da vida, o diálogo das obras, o diálogo dos intercâmbios teológicos, e o diálogo da experiência religiosa.
O diálogo da vida, ou o daquilo que Fitzgerald chama de uma vida harmoniosa, acontece “onde as pessoas se esforçam por viver num espírito de abertura e de boa vizinhança, compartilhando as suas alegrias e tristezas, os seus problemas e as suas preocupações”, nas palavras do Pontifício Conselho.

Cristãos e muçulmanos têm vivido, lado a lado, por séculos na África e na Ásia, e agora os muçulmanos estão presentes, em número crescente, na Europa e na América do Norte.
“Passos devem ser dados no sentido de permitir que as pessoas venham a conhecer umas às outras e a criar harmonia”, disse Fitzgerald. O aumento da violência fez isso ficar mais difícil, mas também mais necessário.

Em segundo lugar, há o diálogo das obras, onde os cristãos e muçulmanos trabalham juntos para encarar os problemas da sociedade. Cristãos e muçulmanos encontraram uma causa comum no movimento pró-vida bem como na defesa dos direitos humanos, nas reformas sociais e no cuidado do meio ambiente. O trabalho em conjunto cria entendimento e confiança.
Em terceiro lugar, há o diálogo dos intercâmbios teológicos onde, segundo o Pontifício Conselho, “os peritos procuram aprofundar a compreensão das suas respectivas heranças religiosas, e apreciar os valores espirituais uns dos outros”. Temas tais como justiça e relações comerciais internacionais, ética dos negócios, problemas de migração, meios de comunicação e religião, respeito pelo meio ambiente e questões de bioética foram, todos, retomados nestes diálogos. Alguns diálogos também discutiram tópicos puramente teológicos, como os fundamentos da santidade e da razão, da fé e da pessoa humana.
Por fim, há o diálogo da experiência religiosa, onde, de acordo também com o Pontifício Conselho, “as pessoas radicadas nas próprias tradições religiosas compartilham as suas riquezas espirituais, por exemplo, no que se refere à oração e à contemplação, à fé e aos caminhos da busca de Deus e do Absoluto”. As comunidades religiosas como a dos beneditinos e dos trapistas se envolveram em tais diálogos.
Fitzgerald concluiu dizendo que o diálogo cristão-muçulmano existe e que, portanto, é possível”. Mas a situação é desigual. “Há lugares onde existe muito pouco ou nenhum interesse em um tal diálogo, também há outros lugares onde as relações com os muçulmanos se tornaram uma preocupação normal para as comunidades cristãs”.
Mas, ao mesmo tempo, uma cooperação está crescendo, e com ela uma suspeita mútua, o que torna o diálogo mais difícil.
Fitzgerald não tem muita confiança em encontros internacionais de líderes e estudiosos religiosos. É um diálogo e uma cooperação no nível local o que faz a diferença. Disse que o diálogo local não deve ser visto como uma brigada de incêndio para se responder às crises, mas sim como uma estratégia de prevenção que constrói relações que vacina/inocula as comunidades para não caírem na violência por causa de suspeitas e mal-entendidos.
“O que implica aumentar o conhecimento mútuo, superar preconceitos, criar confiança”, explicou. “Significa fortalecer os laços de amizade e colaboração a tal ponto que as influências negativas que vêm de fora possam ser trabalhadas”.
“O objetivo aqui é construir solidamente boas relações entre as pessoas de diferentes religiões, ajudando-as a viver em paz e harmonia”, disse Fitzgerald. Ele nota que onde os líderes muçulmanos e cristãos bem como as comunidades têm uma história de cooperação, o conflito é menos provável de se transformar em violência.
“É o conflito o que vira notícia, não a ausência dele”, observou. “E, no entanto, é esta ausência de conflito o que é, realmente, a boa nova”.
Onde o conflito ocorre, há a necessidade de uma purificação das memórias, o que “significa escutar os diferentes relatos sobre os mesmos eventos; significa prestar atenção nos fatos e percepções e tentar chegar a um entendimento comum”, explicou. “Quando se analisa o passado com honestidade, normalmente se verá que nem tudo é oito ou 80. Podem existir erros em ambos os lados. Em todo caso, o reconhecimento dos erros cometidos, das injustiças, atrocidades, é um passo importante em qualquer processo de reconciliação”.
“O diálogo inter-religioso deveria levar a uma busca comum de compreensão, a uma simpatia partilhada por aqueles que sofrem e que passam por necessidades; deveria levar a uma sede de justiça para todos, ao perdão pelo erro cometido, juntamente com uma prontidão para reconhecer os próprios equívocos cometidos, sejam eles individuais ou coletivos”, concluiu Fitzgerald. “Este parece ser o verdadeiro caminho em direção ao diálogo cristão-muçulmano”.
National Catholic Reporter, 13-03-2015.
*Tradução de Isaque Gomes Correa.

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