segunda-feira, 25 de maio de 2015

Condenado à literatura

Estás condenado à literatura, porque ela é um estado de alma, uma doença do espírito.

Estás condenado à literatura, meu irmão. Condenado a ela serás sempre um proscrito, um coração aflito, um soldado em cama de campanha. Ouvirás até o chamado de outras artes e ofícios mas insistirá sempre nela, a literatura. Para o vosso sofrimento, para o tormento daqueles que te cercam e não agüentam mais ouvir você falar sobre o assunto, seja em rodas de samba ou ao redor de sua própria sala. Você falando, falando, enquanto a outra pessoa simplesmente se cala.
Estás condenado à literatura e terás a soberba e pretensão de achar que ela é sim, a mais bela das belas artes, mesmo que você escreva mal e leia bem, e até mesmo se escrever bem e ler muito mal. Porque existem autores que vendem e escrevem mal que se acham tão escritores quanto os que não vendem e escrevem bem . Porque ambos se consideram os "maiores" escritores . E DE FATO O SÃO, pois, todo dia tentam saciar a sua sede de palavras ou afogar, em frases e parágrafos, suas angústias engasgadas por irem bem ou mal em seus serviços ou seus amores serem desfeitos.
Estás condenado à literatura num mundo em que se lê cada vez menos, principalmente literatura. As estatísticas apontam caminhos diversos mas você, condenado, sabe que não aumentam proporcionalmente nesse planeta o número de leitores de romance , contos, novelas e muito menos poesia. Literatura virou chantilly, de um bolo que mal se pode provar, pois, as pessoas estão aflitas lendo soluções em calhamaços de auto-ajuda, ajuda planetária, ocultismos, aforismos e misticismos, em volumes que se chamam livros, mas não o são.
Estás condenado à literatura, porque ela é um estado de alma, uma doença do espírito, uma aceleração do coração, uma situação alterada da consciência. Ela entra em você muito cedo, vírus infectado através de uma palavra ou um gesto, ou uma música linda que primeiro foi seu coração que ouviu. Instalada a literatura dentro de você jamais estarás livre dela, e ainda, ela lhe fará o desatino de que você cometa o atrevimento de não apenas ler. Mas escrever. Daí a questão é outra. Num planeta de poucas árvores é legitimo você, contaminado, escrever livros que em nada acrescentarão? Como se vê literatura sempre é dúvida, jamais solução.
*Ricardo Soares é escritor, diretor de TV, roteirista e jornalista. Foi cronista dos jornais “Diário do Grande ABC”, “Jornal da Tarde”, “O Estado de S.Paulo” e da revista Rolling Stone.

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