Sai hoje nos Estados Unidos “Go set a watchman”, de Harper Lee, o lançamento literário mais esperado do ano. De acordo com as resenhas publicadas por lá, traz uma surpresa inesperada: o advogado Atticus Finch, herói de “O Sol é para todos” – o livro de Lee lançado em 1960, na época do movimento pelos direitos civis –, se torna um racista execrável.
É provável que alguns se lembrem do filme de 1962, em que Finch, vivido por Gregory Peck, defende o negro Tim Robinson de uma acusação de estuprar uma mulher branca. Robinson acaba condenado, Finch sai cabisbaixo do tribunal, mas algumas de suas palavras se tornaram bordões para a geração que lutou contra fim das leis raciais no sul dos Estados Unidos. “A única coisa que não se curva à lei da maioria é a consciência do indivíduo.” “Você nunca entende uma pessoa até considerar as coisas do ponto de vista dela.” O livro é narrado do ponto de vista da menina Jean Louise, ou Scout, filha de Finch. Tornou-se a voz de uma geração no combate ao racismo e vendeu mais de 40 milhões de exemplares no mundo todo.
Mas essa não era a primeira versão entregue por Lee a seus editores. No ano passado, foi descoberta nos papéis de Lee uma versão inicial, rejeitada pouco mais de dois anos antes do lançamento de "O Sol é para todos". Nela, Scout é uma mulher de 26 anos que vem de Nova York visitar o pai no interior do Alabama. Aos 72 anos, Finch revela uma personalidade bem diferente. Em vez do herói que defende o negro inocente da multidão de linchadores racistas, temos um senhor ranzinza, que frequentou reuniões da Ku Klux Klan e solta para a filha frases como: “Você quer negros às carradas em nossas escolas e igrejas e teatros? Quer eles em nosso mundo?”. Nada poderia ser mais distante do ideal projetado pelo Atticus Finch de Hollywood, um símbolo de retidão moral, capaz de suportar o opróbrio da comunidade local em nome de suas convicções pessoais anti-racistas.
A decepção é inevitável e na certa abalará o status de Lee como heroína do movimento pelos direitos civis. Mas mesmo o Atticus Finch original era um personagem diferente do consagrado pela lenda. Em um excelente artigo publicado quase seis anos atrás na revista New Yorker, Malcolm Gladwell argumenta de modo bastante convincente que Finch não era o herói em que foi transformado – “se fosse, teria espumado de raiva com o veredicto”. Em vez disso, simbolizava o “liberal sulista”, alguém até disposto a aceitar os negros na sociedade, mas não a lutar contra as leis de segregação. Sua abordagem, diz Gladwell, era de acomodação, não de reforma.
É verdade que esse retrato ainda está distante do Finch racista, que aparece no livro lançado hoje. Mas talvez Lee originalmente não quisesse fazer dele um herói, apenas um ser humano, com os defeitos comuns à sociedade do Alabama onde ela cresceu. Finch, inspirado em seu pai, talvez fosse um personagem menor, repleto de defeitos, até mesmo execrável – mas nem por isso menos fascinante.
Destruir os mitos é fundamental para chegar mais perto da verdade. Sem decepção, não existe conhecimento. Não apenas na literatura. Durante décadas, os cientistas consideraram Plutão o nono planeta do sistema solar. À medida que foi aumentando o nível de informação sobre ele, descobriu-se que não era um planeta – mas um outro tipo de astro, que habita os limites do nosso Sistema Solar, batizado como planeta-anão (o New York Times traz um vídeo que explica bem o assunto). Apenas hoje a sonda New Horizons começa a fazer as primeiras imagens em alta resolução de Plutão – e nos revelará talvez um ambiente completamente diferente do conjurado pelo nome do deus grego dos infernos. Como Plutão, Atticus Finch também foi rebaixado. Mas agora, pelo menos, sabemos a verdade.
Foto: Divulgação
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