quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Livros, fonte inesgotável de prazer

A leitura de um bom livro alimenta a alma e engrandece nossas emoções.
Por Celso Adolfo*
"Tropeçavas nos astros desastrada/Quase não tínhamos livros em casa/E a cidade não tinha livraria/Mas os livros que em nossa vida entraram/São como a radiação de um corpo negro/Apontando pra a expansão do Universo/Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso/(E, sem dúvida, sobretudo o verso)/É o que pode lançar mundos no mundo", diz Caetano Veloso na sua música "Livros."
Umberto Eco diz que é impossível serem iguais os homens que negociam pia e os de cultura que negociam livros. O que não desmerece os outros negócios, nos negócios do livro, no entanto, é o que demonstra as suas diferenças.
Nossas casas e cidades interioranas são assim, sem livros. Antônio Carlos Drummond de Vasconcelos me diz que quando visita alguém, a primeira coisa que ele espera ver, já na sala, é uma biblioteca, de qualquer tamanho, ou uns livros empilhados que seja. Mas, livros, e à vista e na entrada.
Indispensável, o incentivo à leitura sempre foi custoso tanto para quem necessitasse dele quanto para quem fosse o incentivador.
E o livro na sua saga ora feliz ora nem tanto, acabou sendo objeto desta piada que se conta em BH: Era aniversário do governador e lhe dão um livro de presente. Ao que ele responde: Oh meu  caro deputado, não precisava se incomodar, lá em casa já tem um.
A par de tudo, acontecimentos em torno dos livros, dos mais modestos aos muito badalados, vão se multiplicando. Pois, uma ótima quarta edição do Festival de Literatura de Araxá encerrou-se neste 30 de agosto. Mineiro e interiorano, o FliAraxá de 2015 homenageou Lya Luft e levou ali o grande escritor português Gonçalo M. Tavares, Nélida Piñon, Marina Colasanti, José Paulo Cavalcante, Xico Sá, Maurício de Souza e Myriam Leitão entre muitos craques das letras (e de outras artes) nacionais. 
Idealizado por Afonso Borges (Sempre Um Papo), mal encerra-se essa edição e a próxima já pode tomá-la como modelo de sucesso. Os mais modestos devem encorajar-se. Se bem estruturados, não importa o seu tamanho, viabilizam-se por meio das leis de incentivo à cultura.
Humberto Werneck (um dos curadores/mediadores do Fli-Araxá ) escreveu "O desatino da rapaziada" e foi às minúcias do que acontecia entre 1920 e 1970 com o jornalismo e os jornalistas, poetas e escritores de uma Belo Horizonte que tinha 22 anos encontrando-se com a outra que chegava aos 72. A nova capital cultivava uma meninada nascida nos anos iniciais de 1900. Vários chegaram, produtivos, aos anos 1970. Eram nativos e gente de Cataguases, de Itabira, de Ouro Preto, Montes Claros. Um menino que do Espírito Santo: Ruben Braga.
Todos provaram as primeiras sacas de sal do jornalismo e da literatura da novíssima capital. Na arcádia mineira, nos tempos de D. Pedro II e na república que o substituía, em Anatole France (chavão da ocasião), em Mário e Oswald de Andrade, em Blaise Cendrars, Carlos Drummond, Emílio Moura, Abgard Renault e Manoel Bandeira, no Brasil em redescobrimento, aí estava fundo e forma amparando/aparando as originalidades do que viesse a ser publicado. Publicaram e lançaram mundos no mundo mineiro/brasileiro.
Tomando "O desatino da rapaziada" e 1920 como ponto de partida, estamos a uns cem anos dos começos da história do jornalismo e da literatura propriamente belo-horizontinos. Entre incêndios de todo tipo, os livros se salvaram. Na minha casa interiorana dos 1960, as gavetas de retalhos da costureira Dona Daíca, minha mãe, protegiam (só) três publicações: o Canto Orfeônico (Villa-Lobos),uma Seleta em prosa e verso e mais um livro sem capa e sem as primeiras páginas que até hoje não sei de quem e nem que nome tinha. (Sempre acho que, se não era do inglês William Somerset Maugham, era um livro de contos do francês Guy de Maupassant. Há mais chances de que seja do contista, porque a língua francesa ainda era ainda prestigiada e a estudávamos tanto quanto o inglês).
Um dia, Guido Valamiel, nosso professor de português, mandou que cada aluno lesse algum livro que tivesse em casa e fizesse uma composição sobre ele. Eu li o tal sem capa e sem as primeiras páginas que os retalhos protegiam. Nada entendi. E fiz a minha composição baseado em nada que entendi e me dei muito mal. O professor, limitado às condições didáticas de 1968, só queria que a meninada se iniciasse no mundo dos livros. Guido estava certo. Muitos pegaram gosto pela coisa e ainda leem.
Editar livros com capricho é outra parte desta história. Em BH, Guilherme Seara é um designer que tem raríssimos talento e trato quando prepara uma edição especial deles. Em Brasília, honra-me ser o confrade № 130 da Confraria dos Bibliófilos de Brasília (CBB - comandada pelo araxaense José Sales Neto e sua mulher Maria Inês dos Santos) onde há confrades e confreiras de alta octanagem. José Mindlin foi um deles. A CBB dá beleza formal às suas edições, e edita livros especiais cujas escolhas vêm dos votos dos seus 450 membros. São exemplares para guardar e/ou exibir. Mas, quando se abre um deles, o prazer da leitura se renova. 
Uma das origens deste esforço está no editor, tipógrafo e livreiro veneziano Aldo Manuzio (1450-1515). Criou tipos e editou raridades. Limitado às condições da sua época, criou "belos objetos" que salvavam o conhecimento. Reconhecido, artistas de livros de todas as épocas buscaram nele alguma inspiração. Mesmo tão diluídas ao longos dos séculos, certas inspirações de Aldo Manuzio ainda são visíveis. Na tipia, criou as fontes com cerifa; a fonte Roman é dele. Hoje ela é a conhecidaTimes New Roman.
Os tempos remotos e seus "livros" traziam educação pelo barro, pelo pergaminho, pela pedra, reservando-se artística e moralmente. O renascimento italiano reservou a Aldo Manuzio a glória duradoura. Ao governador do século XX, a ignorância reservou a piada. Que ainda vale.
Desde fins de 2013 não se apagam da minha lembrança as imagens dos livros e cadernos que os meninos de uma escola de Itaúna (MG) rasgavam fazendo gestos de uma estúpida alegria ao final daquele ano letivo. Aquilo me perturbou, sinceramente, e ainda penso nas percepções artística e moral com as quais eles se formarão. Com elas, enquanto crescem até se tornarem adultos, é que traçarão os seus destinos. Observado o tratamento que deram aos livros e aos seus cadernos (salvo se tiverem a sorte de enorme mudança mental), é certo que pode-se esperar menos daquela meninada, pois os elementos intelectuais que os forjaram serão de valor duvidoso, confuso, impreciso, seguramente pior do que poderia e deveria ser.
Entre iPod, iPadOne Direction e umas tais novelas para crianças, observo Ana e Laura, minhas filhas de 11 anos. Elas estiveram comigo nas duas edições do FliAraxá de que tomei parte. Neste ano eu apresentei canções que venho compondo inspiradas em Sagarana; Pasquale Cipro Neto fazia comentários e a mediação era de Alexandre Castro.
Na primeira fila, elas cantarolavam o que já conheciam. Eu reparava aqueles olhos e ouvidos inocentes/curiosos buscando o nosso palco.
Chegando da viagem, ouvi isso de Laura: Papai, Pasquale falou que Sagarana não é um livro de contos. É de no-ve-las. Então, já vou avisando: estamos liberadas para  Malhação Além do tempo, viu?
*Celso Adolfo é violonista e compositor.

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