sábado, 12 de setembro de 2015

Proximidade sem incerteza

Decisão de Francisco busca garantir a qualidade eclesial dos atos e das relações.

A comunidade de fé está envolvida na celebração do sacramento do matrimônio e na instituição conjugal.
Por Pierangelo Sequeri*
Não existe, na Igreja, um "governo de técnicos". O governo da Igreja é confiada a Pastores. Uma coisa é dispor das habilidades necessárias, outra coisa é ser suplantado. Em assuntos relativos à salvação das almas e para o bem dos fiéis, não se deve nem mesmo dar a impressão de que o poder de "ligar e desligar", confiado aos sucessores do Apóstolo Pedro, ("para realizar, na Igreja, a obra da justiça e da verdade") pode ser limitado, ou até mesmo tomado por conta própria, a partir de um dispositivo separado, ou mesmo paralelo. O supremo e universal poder das "chaves" confiado ao ministério petrino, na Igreja, "afirma, reforça e justifica aquela dos Pastores das Igrejas particulares".
Em razão deste título, derivado da sucessão apostólica, eles "têm um sagrado direito, e diante do Senhor, o dever de julgar seus súditos".
A primeira pedra angular das disposições do Papa Francisco marcam a linha de coerência do presente princípio, também no contexto dos processos judiciários relativos às causas de anulação matrimonial ("para ser finalmente traduzidos em prática o ensinamentos do Concílio Vaticano II"). É, portanto, um dos pilares da eclesiologia que deve ser colocado de volta em honra e em evidência, não uma simples questão de procedimentos a serem ajustados. Todas as instituições da Igreja, "ainda que sempre perfectíveis", nunca devem perder de vista - mesmo nas questões mais difíceis, nem mesmo nos detalhes mais técnicos – sua ordenação soberana, ditadas pela "finalidade essencial da Igreja": comunicar a graça divina, não impedi-la. Desse ordenamento, ou seja, da dedicação e do julgamento que isso requer, os Pastores são sempre responsáveis, com titularidade única e insubstituível.
A decisão de Francisco, que recompõe e articula em torno deste princípio de responsabilidade o inteiro projeto de reforma da disciplina canónica, mostra claramente sua intenção profunda. Não se trata simplesmente de simplificar os procedimentos, ou de simplificar as etapas. Trata-se de garantir a qualidade eclesial dos atos e das relações que estão em jogo. Para que não se tornem questões de querelas que irão desencorajar ou questões de prestígio e lucro para impostores. A titularidade pastoral e judicial do Bispo garante, e deixa claro, a natureza eclesial que esta passagem difícil e delicada deve conservar. O exercício direto do ministério episcopal deve introduzir, desde o início, a percepção do juízo eclesial, onde o discernimento e o cuidado, a avaliação e o acompanhamento, a seriedade e a compreensão não se movem em registros separados. Eles estão harmonizados, focando seriamente ao essencial, num contexto de sabedoria e de proximidade da Igreja, que o discernimento e o juízo dos Pastores mantém ao abrigo de uma "justa simplicidade".
O exercício da autoridade judicial do Bispo, inseparável de sua dedicação pastoral, deve aliviar o acúmulo desnecessário de um senso de distância, de desorientação e incerteza, e mesmo de exasperação e ressentimento, que acabam colocando em risco a relação fiducial com a Igreja, a cujo juízo nos entregamos. E até mesmo a fé, que poderia ser reavivada ou mesmo encontrada.
Este tema do entregar-se à Igreja, onde a fé certamente está em jogo, e que é, de resto, um componente crucial do sacramento do matrimônio cristão, nos leva a apreciar a importância de uma segunda arquitrave, do novo dispositivo judicial e pastoral. O estímulo para registrar mais claramente o discernimento judicial no âmbito da pastoral não destina-se a tornar mais “leve” reconhecimento de nulidade, mas para torna-lo eventualmente mais "séria" a responsabilidade da Igreja. Trata-se de fazer perceber claramente a todos que a comunidade de fé está profundamente envolvida na celebração do sacramento do matrimônio e na instituição conjugal que ele incorpora na Igreja. Onde as condições necessárias para esse vínculo estão faltando, a Igreja não quer deixar na incerteza e prolongar a ambiguidade, colocando num impasse a vida de toda a comunidade. A misericórdia, aqui, então, significa colocar toda a diligência em trazer honestamente à luz um vazio de seriedade e de rigor de um ato que perdeu o encontro com a graça. E assim, com a mesma clareza, ativar toda proximidade pastoral capaz de restituir à graça o seu real contexto de fé, de fidelidade e de livre obediência ao mandamento do Senhor. Os dois momentos da mesma Misericórdia (que vem do Senhor, "Juiz clemente e Pastor das nossas almas") estão intimamente relacionados: se não estão unidos, esvaziam-se ambos.
O Papa, urgindo a reapropriação pastoral da autoridade judicial, fala de "proximidade" da Igreja, e também de "conversão" dos Bispos ao espírito e à letra do novo dispositivo. Não acrescenta ao Bispo um novo poder, lhe restitui plenamente o que já tem. O poder de julgar disposições com as quais nos voltamos para a graça do sacramento, o poder de administrar a misericórdia que permite reencontrá-las. Nem um “pingo” a mais, nem um “i” a menos.
Avvenire, 09-09-2015.
*Pierangelo Sequeri, teólogo e sacerdote italiano.

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