terça-feira, 6 de outubro de 2015

O zumbido do vento

'Como podem perceber, o zumbido do vento na Zelândia passou e varreu as minhas ideias'.

Por Lev Chaim*
Sem rádio e sem a programação normal de TV, víamos apenas alguns vídeos velhos de comédias e dávamos algumas escapadelas na internet via celular, quando tínhamos uma conexão decente. Foram doze dias de férias numa região quase deserta da Holanda, junto ao mar, no sudoeste do país, na região de Flandres, mas a Flandres dos holandeses, situada ao sul da província da Zelândia, junto à Bélgica.
Uma área verde de perder de vista ao lado do mar, cercada por dunas, na desembocadura ocidental do rio Escalda, de onde se podia ver os navios entrando para o porto de Antuérpia, à 60 quilômetros dali. Como disse, foi um silêncio abençoado, sem políticos, sem jornal, sem ansiedade pela grave crise de refugiados que assola a Europa nestes últimos tempos, sem guerras ou atentados.
A minha única comunicação com o mundo, além de eventuais momentos na internet, foi o romance do dinamarquês Jens Christian Grondahl, ‘Retrato de um homem’, título de sua versão em Holandês. O resto foi preenchido com grandes caminhadas na praia junto com amigos e Pitú (meu cão), aliás o único que entrou no mar à caça de sua bolinha, sem se importar com o frio da água.
Foi um carregar de baterias e verdadeiros momentos de reflexão sobre a vida, sobre o próprio dia do perdão, o Yom Kipur, que coincidiu com estas nossas férias. Li uma coisa interessante sobre este dia do calendário judaico: “É a oportunidade dada por Deus de virar a nossa página da vida e acreditar em nossa capacidade de melhorar, corrigir os erros e não nos tornarmos reféns do passado”. Em outras palavras, você tem que se perdoar pelos seus próprios erros, em primeiro lugar, para depois poder perdoar os outros.
Depois destas reflexões, acreditem ou não, fiquei bem melhor. Até a leitura correu mais fluída e pude adentrar na história do homem que conta a sua vida através dos personagens femininos que passaram por ela, a começar pela mãe, que está doente e vai morrer, antes do tempo quero dizer.
E com a chuva que ameaçava e as vezes acontecia, até que tivemos sorte. Naquela área da Holanda o vento é forte e varre rapidamente as nuvens, deixando o céu novamente azul, quando menos você espera. O vento na Zelândia, para quem não está acostumado, as vezes, assusta. Ele não passa de todo, mas fica constante e você o sente pelo zumbido das folhas no alto das árvores.
A rotina: levantar, comprar o pão para o café da manhã e ao mesmo tempo sair com o Pitú pela primeira vez ao dia. Isto por volta das oito da manhã. Depois, fazíamos uma longa caminhada pela praia, contávamos os barcos de carga que passavam e jogávamos a bola para que o Pitú a buscasse no mar. Não havia coisa melhor para ele. À tarde, pegávamos o carro para fazer compras para o jantar e visitar algum lugar pitoresco da região. De uma outra vez que ali estivemos fomos a Brugges, na Bélgica. Desta vez, visitamos a cidade fortaleza de Hulst, na Holanda mesmo.
É um bastião medieval, que serviu para defender a região dos invasores estrangeiros, tal qual a minha própria cidade, Heusden, um dia o fez. Um dos meus amigos, vendo a foto daquela cidade, fez um comentário jocoso: “Lev, até parece uma traição, à Heusden ”. Mas eu o tranquilizei ao afirmar que a nossa cidade era muito mais bonita.
Foi ali também que pensei um pouco sobre uma outra frase de uma amiga, que disse um dia que havia pessoas inteligentes, mas que não eram intelectuais. Que elas não tinham a base necessária do conhecimento clássico! Fiquei intrigado e me perguntei se seria o mesmo que estaria acontecendo  atualmente com a crítica literária, centralizada mais no poder de venda do livro do que na qualidade literária do mesmo?
Como podem perceber, o zumbido do vento na Zelândia passou e varreu as minhas ideias, mas trouxe outras mais profundas para serem refletidas com calma. Foram umas férias para zerar o velocímetro, descansar a mente e pensar apenas naquilo que você realmente ‘queria pensar’, sem se deixar abater muito pelas tragédias do dia-a-dia.    
Na volta, a gente tem que se adaptar de novo ao velho ritmo e continuar a vida. Mas como lembrou um amigo meu, sem que você perceba, muitas coisas já mudaram e você também mudou. Nada passa em vão, nem mesmo o zumbido do vento – uma frase que poderia também ter sido dita pelo grande Vincent van Gogh, na sua luta pela sanidade física e moral.
*Lev Chaim é jornalista, colunista, publicista da FalaBrasil e trabalhou mais de 20 anos para a Radio Internacional da Holanda, país onde mora até hoje. Ele escreve todas as terças para o Domtotal.

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