A Vale do Rio Doce tirou o seu nome de dentro do rio e depois tirou o rio do seu nome.
Por Celso Adolfo*
Rubem Braga, na crônica ‘Passarinho’, de 1959, do livro Crônicas do Espírito Santo, fala das viagens que fez acompanhando-se de Augusto Ruschi, homem-beija-flor, agrônomo, naturalista e ambientalista capixaba.
Augusto Ruschi sofreu o diabo, sofrimento que piorou na ditadura. Excetuada a lama de hoje, ele passou a vida vendo e prevendo (entre outras barbaridades) o que se vê agora: o Rio Doce morrendo, morrendo mesmo, há anos correndo entre sofás e pneus e garrafas pets, sofrendo a morte lenta dos rios mundo afora. Incluo o meu Ribeirão do Prata (intimamente, Rio Lava-pés), de São Domingos do Prata, toponímia que retirou à lua e às águas e a um santo da inquisição esse seu nome.
O Lava-pés, onde se via cascudos atravessando-o numa pinguela, frágil, vai minguando e corre agora entre moitas de capim, com um metro de largura onde tinha vinte, levando porcaria leito abaixo.
E eu pergunto: A Vale do Rio Doce tirou o seu nome de dentro do rio e depois tirou o rio do seu nome por que o que é doce um dia se acaba ou por que já não se entendia com o rio nem com os doces que haviam nos nomes dela e do rio e que faziam parecer mais doces o seu nome e o nome do rio? Mudou-se para quê, para onde, para o quê, para a Vale do Rio Que Foi-se?
No Espírito Santo havia um criminoso à sombra da ditadura, o cortador de árvores Rainor Grecco, que ria e fazia ironia quando falava de Augusto Ruschi. Hoje, tenho lido quem sugerisse uma motosserra de Rainor contra os pescoços da Vale. É uma péssima ideia. Nem como metáfora, nem como manifestação de muita raiva, justíssima raiva. A conversa terá que ser outra. Metáfora inevitável, comecemos pelo barro onde nos atolaremos se a conversa não mudar. É por aí que o bicho vai pegar, e já incluindo o risco novo: atolarmo-nos todos no Gandarela.
O Gandarela? Não! Pelamor das minhas filhinhas!
Diálogo. Empresas nos acostumaram a ver nisso um jogo sempre mentiroso. Numa hora de raivas como essa, vem a violência verbal no território incontrolável do Facebook. É um grito pro alto, uma imagem desesperada, bagunçada, com rosto e sem rosto. Mas, já é difícil discordar até dos descontrolados.
Os controladores da Samarco não se livrarão da sua responsabilidade. Nem porque a Vale patrocina projetos (via leis de incentivo, dinheiro público, portanto) e muito menos porque banca políticos, incluindo os de projetos inconfessáveis. Pois, ela sabe que a barraca está montada na sua porta e nenhuma enrolação derrubará essa lona.
Augusto Ruschi pelejou e morreu sabendo que tudo que fizesse seria insuficiente, para que, afinal, entre erros de todo tipo perante a natureza, não chegássemos à lama da Samarco. Pois, chegamos. Que ele tenha morrido feliz consigo, isso é certo. E infeliz com o que não podia enfrentar, embora enfrentasse, também é certo.
A violência das máquinas e as frases sujas que o criminoso Rainor Grecco reservava a Augusto Ruschi eram inaceitáveis. E até no momento do seu velório, o homem-beija-flor ouviu ironias de Rainor. Pois o homem-motossera fez o que quis e morreu sem culpa, rico e bajulado sem ter sido devidamente incomodado.
Incomodemos os controladores da Samarco, eles se incomodarão, eles terão que se incomodar. E pagarão com dinheiro o que com isso se paga.
Rubem Braga, em Não me maltrate o mineiro (de 1952), do mesmo Crônicas do Espírito Santo, citou toadas e versos. Entre eles esses:
Não me maltrate o mineiro
que mineiro é gente boa
do mineiro eu quero as pernas
para remos de canoa.
A mineirama e o restante da nacionalidade brasileira já havia adentrado mares, lagos e matas do território capixaba. Entretanto, a trova que nos dizia respeito era um gracejo contra o qual mineiro algum se levantou. Seja porque faltasse à personalidade capixaba o dom para a falta de graça, seja porque a trova, de fato, não passasse de gracejo inofensivo. E, duvido mesmo que seja conhecida, pois, entre nós, nunca foi repetida.
Sem nenhuma graça, aí sim, brasileiros e estrangeiros muito estranhos, mineiros (com e sem culpa) ofereceram-se, e numa tacada só, os cruéis versos de minério e lama que correram logo pelo mineiríssimo Rio Doce! Triste ironia, triste sujeira que trucidou tudo antes de atingir o Atlântico espírito-santense.
Augusto Ruschi disse:
A natureza cobrará tributos cada vez mais caros.
E, se desejarmos continuar como elementos integrantes dessa mesma natureza,
a quem devemos uma grande parcela de nossa existência,
façamos-lhe justiça, conservando-a.
É a trova que devemos repetir.
Visite a fotogaleria ‘As águas doces do mundo’
Rubem Braga, na crônica ‘Passarinho’, de 1959, do livro Crônicas do Espírito Santo, fala das viagens que fez acompanhando-se de Augusto Ruschi, homem-beija-flor, agrônomo, naturalista e ambientalista capixaba.
Augusto Ruschi sofreu o diabo, sofrimento que piorou na ditadura. Excetuada a lama de hoje, ele passou a vida vendo e prevendo (entre outras barbaridades) o que se vê agora: o Rio Doce morrendo, morrendo mesmo, há anos correndo entre sofás e pneus e garrafas pets, sofrendo a morte lenta dos rios mundo afora. Incluo o meu Ribeirão do Prata (intimamente, Rio Lava-pés), de São Domingos do Prata, toponímia que retirou à lua e às águas e a um santo da inquisição esse seu nome.
O Lava-pés, onde se via cascudos atravessando-o numa pinguela, frágil, vai minguando e corre agora entre moitas de capim, com um metro de largura onde tinha vinte, levando porcaria leito abaixo.
E eu pergunto: A Vale do Rio Doce tirou o seu nome de dentro do rio e depois tirou o rio do seu nome por que o que é doce um dia se acaba ou por que já não se entendia com o rio nem com os doces que haviam nos nomes dela e do rio e que faziam parecer mais doces o seu nome e o nome do rio? Mudou-se para quê, para onde, para o quê, para a Vale do Rio Que Foi-se?
No Espírito Santo havia um criminoso à sombra da ditadura, o cortador de árvores Rainor Grecco, que ria e fazia ironia quando falava de Augusto Ruschi. Hoje, tenho lido quem sugerisse uma motosserra de Rainor contra os pescoços da Vale. É uma péssima ideia. Nem como metáfora, nem como manifestação de muita raiva, justíssima raiva. A conversa terá que ser outra. Metáfora inevitável, comecemos pelo barro onde nos atolaremos se a conversa não mudar. É por aí que o bicho vai pegar, e já incluindo o risco novo: atolarmo-nos todos no Gandarela.
O Gandarela? Não! Pelamor das minhas filhinhas!
Diálogo. Empresas nos acostumaram a ver nisso um jogo sempre mentiroso. Numa hora de raivas como essa, vem a violência verbal no território incontrolável do Facebook. É um grito pro alto, uma imagem desesperada, bagunçada, com rosto e sem rosto. Mas, já é difícil discordar até dos descontrolados.
Os controladores da Samarco não se livrarão da sua responsabilidade. Nem porque a Vale patrocina projetos (via leis de incentivo, dinheiro público, portanto) e muito menos porque banca políticos, incluindo os de projetos inconfessáveis. Pois, ela sabe que a barraca está montada na sua porta e nenhuma enrolação derrubará essa lona.
Augusto Ruschi pelejou e morreu sabendo que tudo que fizesse seria insuficiente, para que, afinal, entre erros de todo tipo perante a natureza, não chegássemos à lama da Samarco. Pois, chegamos. Que ele tenha morrido feliz consigo, isso é certo. E infeliz com o que não podia enfrentar, embora enfrentasse, também é certo.
A violência das máquinas e as frases sujas que o criminoso Rainor Grecco reservava a Augusto Ruschi eram inaceitáveis. E até no momento do seu velório, o homem-beija-flor ouviu ironias de Rainor. Pois o homem-motossera fez o que quis e morreu sem culpa, rico e bajulado sem ter sido devidamente incomodado.
Incomodemos os controladores da Samarco, eles se incomodarão, eles terão que se incomodar. E pagarão com dinheiro o que com isso se paga.
Rubem Braga, em Não me maltrate o mineiro (de 1952), do mesmo Crônicas do Espírito Santo, citou toadas e versos. Entre eles esses:
Não me maltrate o mineiro
que mineiro é gente boa
do mineiro eu quero as pernas
para remos de canoa.
A mineirama e o restante da nacionalidade brasileira já havia adentrado mares, lagos e matas do território capixaba. Entretanto, a trova que nos dizia respeito era um gracejo contra o qual mineiro algum se levantou. Seja porque faltasse à personalidade capixaba o dom para a falta de graça, seja porque a trova, de fato, não passasse de gracejo inofensivo. E, duvido mesmo que seja conhecida, pois, entre nós, nunca foi repetida.
Sem nenhuma graça, aí sim, brasileiros e estrangeiros muito estranhos, mineiros (com e sem culpa) ofereceram-se, e numa tacada só, os cruéis versos de minério e lama que correram logo pelo mineiríssimo Rio Doce! Triste ironia, triste sujeira que trucidou tudo antes de atingir o Atlântico espírito-santense.
Augusto Ruschi disse:
A natureza cobrará tributos cada vez mais caros.
E, se desejarmos continuar como elementos integrantes dessa mesma natureza,
a quem devemos uma grande parcela de nossa existência,
façamos-lhe justiça, conservando-a.
É a trova que devemos repetir.
Visite a fotogaleria ‘As águas doces do mundo’
*Celso Adolfo é mineiro de São Domingos do Prata, violonista e compositor.
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