quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

As mãos maternas num trem Amsterdam Paris

'As mãos não envelheceram e na verdade agora minha mãe era as suas mãos'.
Por Ricardo Soares*
Minha mãe, muito mais esperta do que eu supunha, já havia comprado nossas passagens para Amsterdam e me aguardava na plataforma de embarque da Gare du Nord abraçada a sua pequena mala vermelha e a uma garrafa de Beaujolais .
Quando cheguei, afoito e ofegante, a primeira coisa que ela fez foi ralhar comigo dizendo “menino , cadê o agasalho??, esse vento de Paris corta a gente no meio! Fica fácil de pegar uma pneumonia”. Trágica, sempre trágica minha mãe com suas crises abruptas de bronquite e as chiadeiras no peito dizendo sempre que era herança da noite em que eu nasci, a mais fria daquele junho e de muitos outros. Sempre me senti culpado por isso e acho que essa era justamente a intenção dela.
Nem eu nem a minha mãe sabíamos quanto tempo levava a viagem. Queríamos apenas desfrutar o prazer de estarmos juntos de novo depois de tantos anos. Sem brigas e culpas, sem acusações mútuas. Só matando as saudades. Na viagem poderia lhe contar de algumas viagens perigosas que fiz pelo mundo sem contar para ela o destino final. Assim Colômbia virou Equador, a faixa de Gaza virou o  Cairo e a Síria virou Marrocos.
Mamãe morria de medo de aviões e de guerras. Sempre se perguntava porque eu tinha que estar metido nas duas quando não ao mesmo tempo. Ela falava pausadamente e me ative nas suas mãos tão lindas, tão delicadas que um dia tocaram Lizt, Chopin, Mendelssohn. Unhas bonitas, bem aparadas, esmalte claro. Mãos da moça que um dia fora. As mãos não envelheceram e na verdade agora minha mãe era as suas mãos. Toda nova, cheia de vida, com planos. Tocava seu novo lenço colorido amarrado ao pescoço à moda das francesas. E até gastava o parco francês que aprendera um dia no colégio São José, em São Paulo. Gostava de ir todo dia à mesma boulangerie para pedir “une baguette tradition ...”. E caprichava na pronuncia , orgulhosa.
Serviu-se de vinho, perguntou do meu novo amor, o terceiro casamento, e especulou se nunca na vida eu usaria uma aliança. Respondi, lugar comum, que as alianças se fazem na vida. Como a que eu tinha com ela e sentia agora ao segurar entre as minhas as suas duas mãos delicadas, quentes, macias. Tão quentes e macias que nem pareciam ter me deixado há exatos 15 anos quando num dia tão frio quanto esse ela foi sepultada sem nunca ter pego um trem para Amsterdam deixando Paris para trás. Para sempre.
*Ricardo Soares é escritor, diretor de tv, roteirista e jornalista. Autor de sete livros foi cronista dos jornais "O Estado de S.Paulo " e "Jornal da Tarde" entre outros.

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