A incapacidade de opinar e decidir é justamente o que molda este exército de zumbis.
Por Max Velati*
Na semana passada escrevi aqui a respeito da proposta em andamento de uma nova base curricular para as escolas do país. Recebi muitos e-mails de amigos e até de desconhecidos e a maioria concordava com o meu ponto de vista. Entretanto, uma mensagem não apoiava a minha opinião. O autor, que pertence à categoria dos “desconhecidos”, defendeu uma urgente “modernização” do conteúdo e uma “revolucionária independência” da visão europeia da História.
É claro que ele tem todo o direito de defender esta opinião e qualquer outra que quiser, mas o que me saltou aos olhos foi o texto ruim, desconexo, a incapacidade de organizar um ponto de vista. Eu não estou colocando na balança os erros de ortografia. Eu aceitaria cachorro com “xis” se a construção lógica fosse respeitável. Mas ficou evidente a incapacidade de um raciocínio claro e isso me leva ao tema de hoje.
Essa semana o MEC liberou as notas do Enem. Também liberou uma notícia grave dando conta que 53.035 alunos tiraram nota zero na redação. Antes que você pense que demos um grande passo na direção certa, já que no ano passado o número de zeros foi de 520 mil, lamento observar que na conta deste ano ficaram fora das estatísticas as redações em branco. Assim, os 53.035 alunos escreveram de fato alguma coisa que mereceu nota zero. Não sei quantas redações ficaram em branco e gostaria muito de saber.
Na certa vou receber esta semana outro e-mail do mesmo “desconhecido” argumentando (mal) que nem todo mundo tem o dom da escrita, talento literário e afins. Concedo. Os sábios do MEC reconhecem essa injustiça do destino e, por isso, as exigências a serem cumpridas para entregar o que eles chamam de redação beiram o ridículo. No ano passado era preciso escrever o mínimo de oito linhas. A exigência atual é de um texto com ao menos sete linhas. O aluno ainda recebe “textos motivadores”, referências para o caso de um bloqueio criativo. E ainda assim estes 53.035 alunos não conseguiram obter um único e solitário ponto.
Já adianto ao meu caro “desconhecido” que a redação não precisa ser uma obra de arte. Ninguém espera que seja um primor e a prova não é um concurso literário. Um texto serve para mostrar a capacidade do aluno de organizar uma opinião. Falhar nisso de maneira tão retumbante prova que o direito sagrado de opinar foi reduzido neste país a um mero “curtir ou não curtir” no Facebook. Eis a questão.
O meu caro “desconhecido” pode sugerir que ninguém é obrigado a ter opinião sobre tudo. Concedo mais uma vez. Ninguém é obrigado a ter opinião, do mesmo modo que ninguém é obrigado a tomar decisões. A incapacidade de opinar e decidir é justamente o que molda este exército de zumbis, a massa de manobra que está crescendo tanto no Brasil quanto no exterior.
Mesmo que não seja obrigatório ter uma opinião, considero estarrecedor o fato de ninguém ter uma opinião sobre um tema tão claro, tão pronto a oferecer de graça um sólido ponto de vista. A redação não deveria ser sobre desarmamento, parlamento ou monarquia, alimentação tradicional ou vegetariana... nada disso. O tema não oferecia de fato o desafio de construir uma opinião. Os alunos que tiraram zero deveriam opinar no mínimo com sete linhas sobre “A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”. Sete linhas sobre um aspecto indefensável e inadmissível da realidade brasileira.
Meu maior receio é que os sábios do MEC mudem as regras mais uma vez. No ano que vem serão seis linhas, talvez cinco.
Vai chegar o dia em que o aluno só terá que copiar de próprio punho o tema sem cometer erros.
*Max Velati trabalhou muitos anos em Publicidade, Jornalismo e publicou, sob pseudônimos, uma dezena de livros sobre Filosofia e História para o público juvenil. Atualmente, além da literatura, é professor de esgrima e chargista de Economia da Folha de S. Paulo. Publica no Dom Total toda sexta-feira.
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