As polêmicas, como esta sobre um suposto “conselho” do papa quanto à contracepção artificial em tempos de epidemia de Zika, sempre podem ser uma excelente oportunidade de evangelização, desde que estejamos preparados para elas.
Há um pequeno grupo de jovens juristas e estudantes de direito que eu acompanho. É um grupo pequeno e despretensioso, que se reúne mensalmente numa faculdade de Direito e tenta pensar as questões jurídicas a partir da consideração de uma reta filosofia e dos princípios morais cristãos. A experiência tem uns três anos, e tem sido muito enriquecedora para mim – e creio que para todos os que estão envolvidos. O grupo tem, é claro, um bate-papo numa rede social telefônica, no qual discute os temas candentes relativos à interseção entre fé e direito que não cessam de irromper na imprensa. Muitas vezes, inclusive, quando as polêmicas se acendem, convidamos alguém para falar para nós, para que possamos debater e aprender mais sobre algum aspecto atual e polêmico sobre os debates que atravessam a nossa sociedade e o meio jurídico e acadêmico.
Como não poderia deixar de ser, o dia começou com uma chuva de perguntas dos jovens no “whatzapp” do grupo, a respeito das notícias, publicadas em toda a grande imprensa, de que o Papa teria admitido que os anticoncepcionais seriam um “mal menor” em caso de infecção por “Zika vírus”. Outros órgãos teriam dito que o Papa “admite o uso de anticoncepcionais contra o Zika vírus”, ou que ele “abriu exceção”, ou que declarou “aceitável” o uso de contracepção artificial nestes casos. Muita polêmica foi gerada, principalmente fora do grupo, com reações as mais variadas, desde aqueles que interpelaram nossos jovens para “festejar” o “avanço” do papa em rumo a una igreja “mais aberta”, mais “atual” e livre dos “preconceitos” e dos “resquícios de tradicionalismos”, até aqueles que rasgaram as vestes e maldisseram as entrevistas do papa em aviões. Alguém chegou a me enviar uma mensagem que recebeu, na qual alguém atribui ao Papa a intenção de “mudar tudo” na igreja Católica”, o que ele só não “conseguiu” devido à suposta “resistência”de alguns maldosos cardeais” da Cúria, que, aferrados ao seu medievalismo, estariam sabotando o Papa Francisco na sua suposta “intenção” de “ordenar mulheres”, “casar” pessoas homoafetivas e liberar a comunhão para todos”. A mensagem terminava com o autor anônimo suspirando: “este Papa quase me dá vontade de ser católico…”
Ah, a força irresistível das teorias da conspiração, aliadas ao que meu filho do meio chama de “deboísmo” (aquela postura contemporânea que acredita que é melhor ser “gente boa” do que procurar fazer a coisa certa…). Por que é tão fácil acreditar e seguir estas duas posturas? Limites humanos…
Ora, eu adverti aos jovens que é necessário sempre ler as informações sobre a Igreja nas fontes corretas. No nosso caso, recomendei a leitura da íntegra da entrevista, aqui. Não sem antes alertar que a maioria das manchetes era tão absurda que a sua simples leitura atenta mostraria sua impropriedade: como seria pensável que qualquer pessoa em sã consciência, papa ou não, pudesse jamais “recomendar o uso de anticoncepcionais contra o Zika Vírus”? É claro que nem o Papa, nem ninguém jamais diria isto!
Lendo o texto da entrevista, fica muito claro que a grande maioria das coisas que se atribui ao Papa não saíram de sua boca, mas da pergunta do repórter – que, como não foi impugnada ponto por ponto pelo Papa, fez com que a imprensa presumisse que ele concordava com os pontos não impugnados. Velha técnica jurídica, truque batido nos tribunais, mas que ainda engana muita gente incauta.
Mas da leitura atenta, fica claro que quem introduziu a questão da “ética do proporcionalismo” em relação à epidemia do Zika vírus foi o repórter, em sua pergunta, assim:
“Santo Padre, há algumas semanas há muita preocupação em muitos países latino-americanos, mas também na Europa, sobre o vírus “Zika”. O risco maior seria para as mulheres grávidas: há angústia. Algumas autoridades propuseram o aborto, ou de se evitar a gravidez. Neste caso, a Igreja pode levar em consideração o conceito de “entre os males, o menor”?”
A pergunta tem uma estrutura muito semelhante àquela feita outrora levaram a adúltera a Jesus e o confrontaram com a legislação que lhe previa o apedrejamento: trata-se de constranger o entrevistado à dura alternativa de ter que escolher, na sua resposta, entre renegar a lei ou renegar a compaixão a quem está numa situação concreta de sofrimento. Como sair de algo assim?
O Papa o faz iniciando através da dura refutação ao aborto. Chama-o de “mal absoluto”, de “crime”, de “comportamento mafioso” de quem “descarta um para salvar o outro”.
Neste ponto, uma das pessoas com quem eu dialogava me questionou se o Papa não tinha sensibilidade com aquelas situações em que se aborta, de maneira perfeitamente legal, para salvar a vida da gestante… Eu respondi, simplesmente, que neste caso há a hipótese do chamado “duplo efeito”: não se quer o aborto. Não se pode querer diretamente o aborto jamais. A vontade é dirigida, aí, à remoção daquilo que constitui ameaça à vida de ambos, a mãe e o filho no ventre. Pode-se, no entanto, tolerar que determinada intervenção cause o efeito, não diretamente querido nem diretamente buscado, mas apenas aceitado, de que a intervenção circunstancialmente cause a morte do bebê no processo de salvar a vida da mãe. Esta morte continua objetivamente má, portanto não pode ser jamais objeto de vontade. Muito menos de intervenção médica direta ou quando o pretexto é o “conforto” dos pais. O Papa está dizendo exatamente isto.
No caso da contracepção, o que o Papa está dizendo é apenas que evitar a gravidez é sempre um mal, porque sempre implica ponderar entre o quinto mandamento – que o fechamento à vida consequente ao ato sexual sempre implica – e o sexto mandamento, aquele que trata da incontinência sexual. Mas a regulação da fertilidade, diz ele, não é um mal em si – justifica-se em situações extremas. Isto já dizia a Humanae Vitae, encíclica do Papa Paulo VI, (que o Papa Francisco cognominou, na resposta, de “o Grande”, com toda justiça) que é celebrada como grande marco em ética sexual. Note-se que o Papa, quando tratou de contracepção artificial, deu um exemplo de contracepção que envolve uma situação de violência sexual contra mulheres indefesas, mais especificamente o estupro de freiras na África, como ilustração do que ele está dizendo.
No mais, diante de uma situação de fato, a epidemia de Zika vírus, na qual nem a ciência tem ainda uma resposta clara, o Papa expressamente diz que a solução para o combate a esta epidemia deve ser o desenvolvimento das pesquisas científicas: “exorto os médicos para que façam tudo para encontrar as vacinas contra estes mosquitos que trazem este mal: sobre isto se deve trabalhar.”
No entanto, e com muita prudência, o Papa se recusa a fazer uma ponderação que implicará na substituição das consciências pessoais confrontadas com um caso concreto do qual ele desconhece as circunstâncias. Exatamente o contrário do que faria, digamos, um líder de seita ou um fundamentalista religioso. Ele simplesmente deixou às pessoas o dever de ponderar, com suas retas consciências, sobre como agir no caso concreto, a partir dos critérios da lei natural, dos mandamentos de Deus e da indisponibilidade da vida. Ele reafirma apenas que evitar a gravidez não é um mal absoluto, quando houver justificativas seríssimas, como já havia dito Paulo VI; mas é sempre um mal, e por isso deve ser considerada com toda prudência e em casos concretos análogos ao que citou, das freiras que eram sistematicamente estupradas. O resto são ilações decorrentes do texto da pergunta do repórter, não da resposta do Papa.
Eu tenho um querido amigo que sempre me diz, brincando, que a Igreja tem Magistério, não “entrevistério”. Principalmente quando se busca informações sobre o Papa na grande imprensa. O conselho que este experiente sacerdote me deu, e que compartilhei com os jovens do grupo, foi o seguinte: toda vez que formos confrontados com alguma suposta “fala” do Papa noticiada pela grande imprensa, perguntemos simplesmente: “onde exatamente o Papa está dizendo isto que dizem que ele falou?”
E ele prosseguiu: “O papa Francisco fala às vezes de um modo que a sua misericórdia e noticiada e distorcida de uma maneira que parece implicar a desconsideração do magistério da Igreja. Mas ele não o fará nunca. Duas coisas devemos, portanto, ter em conta: 1) a percepção irrefutável (ou “de jure”, como dizem os advogados) de que o Papa é católico, e que portanto não somente não precisa reafirmar, a cada vez que fala, que tudo o que a igreja crê continua válido; e 2) que jamais poderemos encontrar, no texto mesmo de suas palavras, as conclusões que seus interlocutores de má-fé querem encontrar ali.”
Quando eu sugeri, brincando, que nos cotizássemos para enviar o Papa, em suas viagens, sempre de navio e nunca de avião, para evitar estas polêmicas, o velho sacerdote me deu uma última lição: “Estas ocasiões, estes alvoroços da imprensa, são uma grande oportunidade de evangelização! Desde que, é claro, conheçamos a Bíblia e a verdadeira Tradição da Igreja, amemos a Deus, respeitemos o Papa, teremos nestas oportunidades a possibilidade de esclarecer nosso interlocutor a respeito da verdade cristã que o Papa está sempre anunciando aos nossos contemporâneos – desde que, é claro, conheçamos razoavelmente nossa própria fé e busquemos, pela graça, vivê-la e testemunhá-la sempre!”
Zenit
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