Para o Comitê Nobel Sueco, os escritos polifônicos de Svetlana deram voz ao povo russo.
Crédito: Ilustração de Marguerita Bornstein.
Por Lev Chaim*
Ela dá a impressão de ser uma pessoa forte, porém triste. Foi esta a imagem que deixou a jornalista e escritora da Bielorrússia, Svetlana Alexievich, Nobel de literatura de 2015, quando passou pela Holanda por algumas horas, para lançar o seu livro “A guerra não tem rosto feminino”. (No Brasil os seus livros serão lançados pela editora Companhia das Letras, se não me engano).
Este livro foi escrito em 1983 e, como os seus outros livros, também nunca foi publicado oficialmente em seu país, apenas no mercado negro. Quando ela ganhou o Nobel de Literatura, o presidente da Bielorrússia a cumprimentou oficialmente, mas, no outro dia, mandou um aviso de que ela estava insultando a população russa do país.
Para o Comitê Nobel Sueco, os escritos polifônicos de Svetlana deram voz ao povo russo, anônimo, traduzindo os seus anseios mais íntimos: “Um monumento ao sofrimento e à coragem em nosso tempo”, foram as palavras usadas pelo Comitê.
Em “A guerra não tem rosto feminino”, ela conta de uma maneira sensível, jornalística e literária, as histórias das muitas mulheres soviéticas que serviram no Exército Vermelho, durante a invasão da União Soviética pela Alemanha, em 1941. Com a derrota do nazismo, elas foram saudadas como heroínas, embora sem o mesmo prestígio e lembrança que os homens. Eram rostos no meio da multidão usados apenas para exaltar a máquina do Estado Ditatorial.
Quando afirmei, à primeira vista, que Svetlana havia dado a impressão de ser triste, até pensei que fosse cansaço, pois acabava de chegar de um giro literário por diferentes países. Mas, logo mais, ela explicou o porquê desta tristeza e cansaço todo. Ela estava preocupada com o futuro do mundo, em especial com o futuro dos países da antiga União Soviética, como a sua querida Bielorrússia.
E ela explicou melhor: “Em uma sociedade totalitária, como a nossa, a guerra era uma forma de vida. Para nós, a guerra era, na verdade, a única forma de existência e a União Soviética estava permanentemente mobilizada”. E ela lembrou ainda que, quando aconteceu a Perestroika de Gorbachov, todos pensaram que o povo ansiava por liberdade e democracia.
Ao viajar pela Rússia, Bielorrússia e Ucrânia, percebeu o engano. O povo, traumatizado pela ditadura soviética, estava agora só interessado em comprar jeans, bananas e carros importados. Sobre a ditadura comunista, todos se silenciavam. Até que Putin subiu ao poder e levou tudo de volta à forma antiga, fingindo-se de democrata.
Mas, Svetlana é sincera e não culpa apenas Putin por esta situação. Ela fala em uma forma de culpa coletiva, onde o homem forte preenche os anseios da maioria do povo russo, que ainda venera a retórica militar populista da antiga União Soviética. Putin percebeu tudo e está usando esta culpa coletiva de um povo traumatizado.
Naquela região do leste europeu, lembrou ela, após a queda da União Soviética, não houve um tribunal para julgar os crimes cometidos, que servisse de divisor de águas, tal qual ocorreu na Alemanha, com o julgamento dos nazistas no tribunal de Nuremberg. Nada foi trabalhado no íntimo das pessoas.
E para ela, o pior de tudo aconteceu em 2012, quando Putin anunciou que havia verba suficiente para a reconstrução da ‘Grande Rússia’, o que soou como música aos ouvidos de um povo cansado, traumatizado e desinformado. Eles acreditaram em Putin. Quando o preço do petróleo caiu, percebeu-se que tudo havia sido um erro. O dinheiro foi gasto em defesa e os investimentos em educação e saúde ficaram a ver navios. Como mudar um povo? – perguntou-se Svetlana, a primeira jornalista a ganhar o Nobel de Literatura.
A sua última advertência antes de partir foi esta: “A Rússia volta a ser um país perigoso, com a volta da ideologia beligerante da antiga União Soviética: temos um grande exército, um país poderoso e um povo unido ao redor deste falso sonho, alimentado agora por Putin.”
Na verdade, Svetlana não é uma mulher triste, mas realista e corajosa, uma mulher de fibra. Quando ela foi avisada por telefone que havia ganho o Nobel de Literatura, no ano passado, ela reagiu com uma única palavra: “Fantástico”. Realmente, fantástico, não só para a Bielorrússia, Rússia e países vizinhos, mas para o mundo inteiro, especialmente para aqueles países que ainda lutam pelo pensamento livre e democrático, sem a interferência de governantes que tentam se perpetuar no poder.
*Lev Chaim é jornalista, colunista, publicista da FalaBrasil e trabalhou mais de 20 anos para a Radio Internacional da Holanda, país onde mora até hoje. Ele escreve todas as terças-feiras para o Domtotal.
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