O mundo nos possui por meio da linguagem.
Percebe-se exclusão social e religiosa das pessoas cujas sexualidades variam à heterossexualidade.
Por Tânia da Silva Mayer*
O ser humano é ser de linguagem e isso é algo que ninguém duvida ou contesta. É na linguagem que nos reconhecemos e possuímos o mundo que nos cerca. Podemos dizer também que o mundo nos possui por meio da linguagem. E na interação do ser humano com ele, as palavras, os conceitos e as linguagens que utilizamos para narrar as experiências pessoais e as relações que daí resultam-se podem afluir a uma rede de violência aniquiladora de determinados grupos humanos, de pessoas e suas vidas. Isto acontece quando se trata da linguagem, ou da ausência dela, quando referimo-nos às narrativas das experiências das pessoas LGBTI[1].
Nesse sentido, percebe-se uma dinâmica de exclusão social e religiosa das pessoas cujas sexualidades variam à heterossexualidade. Esta exclusão é gestada e lavrada linguisticamente no uso cotidiano de conceitos padrões, estabelecidos por grupos de poder, utilizados para narrar determinadas realidades sexuais em detrimento de outras. Por isso, os sistemas políticos e religiosos continuam a propor estereótipos heteronormativos àqueles/as que encontram-se sob seus regimentos. No Brasil essas questões tendem a agudizarem-se quando fundamentalistas religiosos assumem cargos políticos, sobretudo, aqueles cuja função é elaborar e aprovar leis que, a priori, deveriam resguardar os direitos e deveres de todos os cidadãos.
A respeito da exclusão social de indivíduos de outras sexualidades, que não a heterossexualidade, por meio da linguagem, David T. Ozar[2] defende a tese de que é preciso corrigir os conceitos utilizados cotidianamente para descrever as situações de orientação sexual, do sexo biológico e dos gêneros. Segundo ele, há pessoas que não existem socialmente porque elas não existem na linguagem com a qual usualmente nós descrevemos as sexualidades humanas. Uma realidade que não foi descrita não pertence ao universo simbólico e conceitual dos indivíduos sociais. Dessa maneira, quando as sexualidades não são descritas em sua verdade, elas simplesmente não existem para as demais pessoas da sociedade. Assim, um grande número de pessoas não existe socialmente e não tem seus sonhos, desejos, conflitos, problemas, direitos e deveres respeitados e considerados no interior das sociedades e instituições.
A gravidade desse fato é imensurável. Não se trata unicamente de um problema de linguagem, mas de um problema real com consequências graves para as pessoas que têm suas existências sociais negadas. Não existir conceitualmente implica uma inexistência social, que vai muito além de uma invisibilidade. Nesse sentido, uma pessoa LGBTI que sofre violências reais no seu dia a dia, nunca terá seu grito de dor ouvido, não porque ela está invisível, mas porque ela simplesmente não existe para as outras pessoas. “A forma mais radical de exclusão é aquela em que as pessoas excluídas não existem na mente dos outros”. Isso ocorre porque as pessoas ao virem ao mundo o recebem com os seus sistemas já organizados. Elas, incluídas nestes sistemas, veem o mundo como ele “é”, ou seja, veem o mundo conforme ele lhes foi apresentado.
Dessa maneira torna-se evidente que uma exclusão real depende, em boa parte, de uma exclusão linguística que aniquila existências reais. Assim, para Ozar, “a maneira mais eficiente de excluir um conjunto de pessoas do reino da ética e das obrigações é, de longe, que o nosso sistema de conceitos em operação simplesmente não tenha nenhum lugar para elas”[3]. E esse “não lugar” é gestado e lavrado pela linguagem que corriqueiramente usamos para nos relacionarmos, entre nós e com o mundo. Desse modo, quem percebeu que a sua sexualidade é variante da norma estabelecida pelos grupos de poder, dificilmente escutará as narrativas sobre as histórias de suas vidas, porque essas histórias não existem nos cânones sociorreligiosos das sociedades às quais essas pessoas pertencem.
Destarte, essas questões devem ser consideradas não somente no plano social, que nega a existência conceitual e linguística de muitas pessoas e, com isso, negam a existência de deveres e direitos básicos de todo ser humano, mas também no plano religioso. As religiões deveriam revisitar seus sistemas linguísticos e conceituais referentes à sexualidade humana, a fim de que tais sistemas fossem menos excludentes e segregadores. A teologia magistral católica, por exemplo, ainda está muito distante de levantar estas questões, pois, ao referir-se sobre a diversidade sexual, engloba as sexualidades numa única categoria terminológica, a dos “homossexuais”, sem com isso abarcar toda gama das sexualidades divergentes da heterossexualidade. É urgente e necessária uma teologia capaz das realidades sexuais existentes, porque pessoas excluídas por nossos conceitos,
“sequer são como leprosos, que existem, mas têm de ser afastados e, sem dúvida, jamais tocados. As pessoas de que falo não existem. Como se pode avaliar sua vida, seu bem-estar, seus interesses ou seus direitos se nossos conceitos não têm nenhum espaço para elas? Sem acesso ao mundo do significado, suas palavras e preocupações são ruído insensato, palavras e preocupações de pessoas que não existem.
Para estender-lhes a mão, como Jesus fez ao leproso, temos de rejeitar os sistemas de conceitos com que nos acostumamos e construir conceitos que as incluam e às suas maneiras de vivenciar a vida no seio da família humana. E para fazer isso devidamente, como fez Jesus, temos de fato de tocá-las”[4].
Nesse sentido, uma linguagem teológica que surge da práxis libertadora de Jesus, tem por urgência tocar nas feridas dos nossos sistemas linguísticos e conceituais, tantas vezes exclusivistas e excludentes, revisitando-os em tempo de reparar séculos de inexistência e anonimato daqueles/as que nunca tiveram suas existências narradas. Para além de uma solidariedade cristã, a rejeição das linguagens e conceitos padrões que aniquilam pessoas reais é exercício do amor ao próximo, símbolo do amor que ressoa na Cruz como Palavra de vida plena e abundante para todos.
[1] Sigla para designar as pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Transgêneros e Intersexuais. A sigla é favoravelmente utilizada para indicar as sexualidades que variam da heterossexualidade.
[2] OZAR, David T. Sofrimento por meio da exclusão: sobre os conceitos-padrão de orientação sexual, sexo e gênero. In: JUNG, Patricia Beattie; CORAY, Joseph Andrew.Diversidade sexual e Catolicismo para o desenvolvimento da teologia moral. São Paulo: Loyola, 2005. p. 283-296.
[3] Op. Cit. pág. 286.
[4] Op. Cit. pág. 296.
*Tânia da Silva Mayer é Mestra e Bacharela em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje); Cursa Letras na UFMG. É editora de textos da Comissão Arquidiocesana de Publicações, da Arquidiocese de Belo Horizonte. Escreve às sextas-feiras.
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