quarta-feira, 15 de junho de 2016

A austeridade começa em cima

domtotal.com
O Papa, ao desistir de morar no Vaticano, tinha a autoridade para criticar o luxo dos cardeais e prelados.
Por Johan Konings*

Quando perguntei a um economista se o Brasil estava realmente mal, ele me respondeu: “Está mal, mas há saída”. Tecnicamente falando: para sair é preciso cortar despesas em diversos setores, atrair investimentos e incentivar o consumo e a produção... Isso pode ser dito de maneira fria, sem levar em consideração o fator humano. Então se corta na previdência social, na educação, na saúde, na política habitacional e daí em diante. E ainda se xinga os movimentos sociais quando começam a mostrar alguma resistência.

A Bíblia nos dá um belo exemplo de um governante que enxergava as coisas de outro modo. Trata-se do governador de Jerusalém no tempo em que a terra de Israel fazia parte do Império persa, por volta de 400 antes de Cristo.  O povo acabara de voltar do exílio babilônico, um século antes, e na sociedade totalmente desarrumada, os mais espertos tinham abocanhado para si e suas famílias a maior parte do bolo. Chegaram a escravizar seus próprios irmãos israelitas, por causa das dívidas, enquanto esbanjavam luxo e riqueza aos olhos do mundo.

Nesse cenário soou a voz do governador Neemias, judeu nomeado pelo governo persa – e que bem poderia ter se aproveitado dessa situação privilegiada. O povo se queixava porque devia vender seus terrenos e até seus próprios filhos para ter o que comer. Criticavam os ricos: “Somos da mesma raça dos nossos compatriotas e os nossos filhos são como os filhos deles. Apesar disso, temos de sujeitar à escravidão os nossos filhos e as nossas filhas. Aliás, algumas das nossas filhas já são escravas e não podemos fazer nada para evitar isso, pois os nossos campos e as nossas vinhas já pertencem a outros”. A reação do governador Esdras foi taxativa:

“Quando ouvi aquelas queixas e aquelas palavras, fiquei profundamente irritado. Pensei no caso comigo mesmo e repreendi os chefes e responsáveis, por imporem uma tal usura aos seus compatriotas. Convoquei uma grande assembleia por causa deles e disse: ‘Nós resgatamos, conforme pudemos, os nossos compatriotas judeus que tinham sido vendidos aos pagãos; e agora tornam a vendê-los a pessoas do nosso povo, para termos de os resgatar outra vez? O que estão fazendo não está bem! Tinham obrigação de respeitar o nosso Deus e evitar que os pagãos, nossos inimigos, fizessem pouco de nós. Também eu mesmo, os meus companheiros e colaboradores lhes emprestamos dinheiro e trigo. Pois bem! Perdoemos essas dívidas. Restituam-lhes hoje mesmo os seus campos, as suas vinhas, os seus olivais e as suas casas, e perdoem-lhes as dívidas que eles contraíram, seja em dinheiro seja em trigo, em vinho ou azeite” (Esdras 5,5-11 RCS). E o texto diz que os ricos assim fizeram. Se não estivesse na Bíblia, nem acreditaria...

Nesse episódio,  o importante é o princípio: não se pode impor sacrifícios, como se diz, ao povo, se não se exige em primeiro lugar daqueles que mais têm. Ora, muitas vezes, em tempo de crise, como hoje, acontece o contrário. Os que mais têm aproveitam a situação para comprar os produtos a preço de liquidação, porque o povo não tem mais poder aquisitivo, e depois revendem esses produtos a algum comprador que tem ainda o que gastar, enriquecendo-se assim às custas do pobre que não pode comprar. Isso é usura. Mas muitos bons cristãos de classe A e B fazem assim. Sem o mínimo escrúpulo. Ou compram e vendem produtos produzidos em regime de semiescravidão. Para não falar de políticos e magistrados que se concedem aumentos desproporcionais enquanto impõem ao povo programas de austeridade.

Só tem direito a propor austeridade ao povo quem começa cortando em sua própria carne (que, geralmente, não é nada raquítica). O exemplo da austeridade tem de vir de cima. Esse é o melhor marketing para programas de austeridade. Olhe o que fez o papa Francisco. Ao desistir de morar no Vaticano, contentando-se com uma hospedagem modesta numa casa religiosa, tinha a autoridade moral para criticar o luxo dos cardeais e prelados.
 
Nesse sentido é bom que o Brasil, no momento em que procura reestruturar-se, faça uma devassa nos abusos financeiros das grandes empresas e dos políticos. Mas precisa mais do que isso. Precisa de uma atitude de austeridade pessoal dos próprios governantes. E o incentivo ao consumo não pode ser absoluto, pois faz a sociedade entrar no círculo vicioso do produzir para consumir, como se os recursos fossem inesgotáveis. Precisa de moderação, de sabedoria, de virtude.


*Johan Konings nasceu na Bélgica em 1941, onde se tornou Doutor em Teologia pela Universidade Católica de Lovaina, ligado ao Colegio para a América Latina (Fidei Donum). Veio ao Brasil, como sacerdote diocesano, em 1972. Foi professor de exegese bíblica na Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre (1972-82) e na do Rio de Janeiro (1984). Em 1985 entrou na Companhia de Jesus (jesuítas) e, desde 1986, atua como professor de exegese bíblica na FAJE - Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, em Belo Horizonte, onde recebeu o título de Professor Emérito em 2011. Participou da fundação da Escola Superior Dom Helder Câmara.

Nenhum comentário:

Postar um comentário