O direito do próximo de não ser violado deveria estar no topo de nossas considerações.
Se a mulher está num estado em que não pode expressar o seu assentimento, é porque ela não o deu.
Por Alexandre Kawakami*
Há algumas semanas atrás eu escrevi sobre a necessidade de realizarmos o impeachment de algumas formas de discurso não só de nosso governo, mas também de nossos diálogos e de nosso pensamento. Na última semana, essa necessidade se manifestou mais uma vez, da forma mais evidente.
Existem problemas que são sérios, para todos, de forma unânime. Até para os criminosos que os cometem. O estupro é um deles. Sou pai de uma menina que será uma mulher muito em breve. Perco noites de sono imaginando o que faria se ela fosse vítima desse tipo de crime.
Para mim, como para qualquer pai, não existem perguntas sobre o consentimento. Ou ele é expresso e declarado em palavras, atos e sentimentos antes do início, durante e depois do fim do intercurso, ou ele não existe. Fim. Dizer que “ela estava pedindo”, “ela devia saber onde estava se metendo”, “ela não deveria ter bebido e/ou usado drogas”, “isso é resultado de um ambiente sexualizado demais”, e coisa que o valha é atitude de gente ignorante e inconsequente. Se a mulher está num estado em que não pode expressar o seu assentimento, é porque ela não o deu. Se eu dormir no assento do ônibus e alguém levar minha carteira, é roubo do mesmo jeito. E qualificado.
Vão dizer que eu não deveria dormir no ônibus. Eu direi que uma carteira é infinitamente e obviamente menos valiosa do que a dignidade, a integridade, a saúde mental e física de uma pessoa.
A discussão deveria endereçar fatos bastante objetivos como a forma de se localizar os bandidos; os métodos para identificar quem, de fato, cometeu o crime e a melhor maneira de prová-lo; as medidas a serem tomadas para que este crime não ocorra mais, neste caso em específico e de forma geral; como o princípio da sacralidade do corpo, da intimidade e da privacidade humanos, seja feminino ou masculino, deve ser refletido em nossa cultura, em nossa educação, em nossos pensamentos, palavras e ações. Do específico ao geral, em todos os níveis de nossa existência, o direito do próximo de não ser violado deveria estar no topo de nossas considerações.
Mas nesta semana, de tantas formas trágica, não foi isso o que se discutiu.
Primeiramente, veio o tsunami das acusações da “cultura do estupro”. A qual carrega em seu cerne a noção de que nossa cultura tem inerentemente a propensão de fazer da mulher propriedade, o que leva todo o homem a ser um violador em potencial.
Em seguida vieram as cargas de respostas sarcásticas e enfurecidas no desprezo à idéia de que todo o homem é estuprador e na convicção de que toda a feminista é uma feminazi.
E em reação, vieram os gritos escandalosos de que essas próprias respostas eram manifestação da cultura do estupro, uma vez que recusar a existência desta cultura era justificar as ações dos estupradores.
E depois vieram as acusações de que este caso era resultado de políticas paternalistas para com os criminosos propagadas pelos próprios defensores do conceito da “cultura do estupro”, políticas que garantiriam a impunidade destes criminosos de agora e a perpetuação do crime.
E teve mais latidos de cada lado, gente pendurando calcinha manchada de sangue na frente do Congresso de outro, rostos enojados e gritos de “Fora Temer”.
E num instante, tínhamos nos jogado mais uma vez num tipo de discussão que é nojenta e infrutífera: quem é ao meu favor, e quem é contra mim. Discussão que a esquerda ruim, a esquerda do último governo, adora e de fato precisa. Um tipo de discussão que essa esquerda precisa consolidar e fazer existir, pois é a única modalidade de discurso que consegue manter sua inexistente relevância.
E os que não são desta esquerda, mais uma vez, gastaram seu tempo e seu fosfato engajando-se nesta pseudo “conversa”, como se um lado estivesse sequer fingindo ouvir o outro. Consequentemente, fez-se de tudo: só não se discutiu como levantar-se os fatos do caso, como prevenir que eventos semelhantes aconteçam, e como, verdadeiramente, eliminar algo tão hediondo como o estupro da vida de nossa nação.
Deixo a meus leitores as palavras muito pertinentes de Gandalf, o Cinza:
“Eu gostaria que isso não tivesse ocorrido na minha existência”, disse Frodo.
“Eu também”, disse Gandalf, “e assim também todos os que vivem para ver tempos como esses. Mas não nos cabe decidir sobre isso. Tudo o que temos de decidir é o que fazer com o tempo que nos é dado”.
*Alexandre Kawakami é professor de Direito Empresarial e membro fundador do Centro de Compliance e Transparência da Escola de Direito Dom Helder Câmara. É mestre em Direito Econômico Internacional pela Universidade Nacional de Chiba, Japão. Agraciado com o Prêmio Friedrich Hayek de Ensaios da Mont Pelerin Society, em Tóquio, por pesquisa no tema Escolhas Públicas e Livre Comércio.
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