sexta-feira, 3 de junho de 2016

Simancol nas caixas d'água

Hoje em dia a maioria anda aceitando tudo. Qualquer asneira é engolida e replicada.
- Sigam-me, vamos subir morro!
- Sigam-me, vamos subir morro!
Por Fernando Fabbrini*
Foi divertido, apareceu pra todo lado, viram? Um cara esqueceu (ou deixou, de propósito) seus óculos junto à parede de uma sala vazia no Museu de Arte Moderna de São Francisco. Não demorou até que um grupo de visitantes se postasse frente àquela “instalação”, tirando fotos, selfies, discutindo a possívelmensagem hermética do artista. Um caso perfeito para aplicação imediata de Simancol - em gotas ou drágeas.
Viajando pela Índia, o carro começou a ratear. Era uma daquelas relíquias automobilísticas onipresentes nas estradas de lá – o famoso Hindustam Ambassador, réplica do inglês Morris Oxford. Nosso motorista – indiano – disse que não era nada, bastava parar um instante no vilarejo mais próximo onde havia um posto de gasolina e – oba! - uma lanchonete para o esperado refresco depois de horas rodando sob o sol do Rajastão.  
O problema do carro foi logo resolvido após discussões entusiásticas e incompreensíveis entre o nosso motorista e o mecânico.
All set now, sir! – disse.
Aí que ele sugeriu que aproveitássemos o desvio para conhecer um ashram das redondezas, famoso destino de muitos estrangeiros que buscavam o lado exótico e místico da Índia.
Fomos recebidos na entrada por uma americana simpática que arranhava o português, vivera algum tempo no Rio. Um lugar lindo, cheirando a incenso e onde mantras suaves chegavam aos nossos ouvidos impuros, cheios de poeira da estrada. A moça ofereceu-nos livros com a imagem sorridente do guru proprietário nas capas, além de pequenas lembranças a preço módico: colares, batas, penas de pavão.
Caminhei para o pátio interno e lá vi uma cena intrigante. Havia uma dúzia de pessoas – jovens, idosos, homens e mulheres, todos claramente estrangeiros, pela cor da pele e traços típicos. Estavam assentados no chão e quebravam pedras com pequenas marretas. Imaginei que fossem voluntários empenhados na construção de mais uma das casinhas que abrigavam visitantes. Mas, não: segundo me explicou a americana, em voz baixa e solene, estavam ali quebrando pedras em busca da iluminação. O problema é que pagavam caro, em dólares, pela experiência - minutos preciosos marcados por um capataz atento. Mais uma indicação segura para uso de Simancol, terapêutica definitiva.
Um guia espiritual – este, brasileiro – convocou um grupo de discípulos para uma experiência radical. Com mochilas e barracas, deslocaram-se para o alto da serra da Bocaina em pleno mês de julho. Gelava, garoava e ventava sem parar. Acamparam e protegeram-se do frio como puderam. Lá pelas tantas, no meio da madrugada, o guia acordou todo mundo de lanterna acesa em punho, tirando-os para fora:
- Sem agasalho! Venham como estiverem! Proibido pegar blusa, todo mundo descalço!
O líder manda, todos obedecem. Poucos notaram que o guru da madrugada estava bem encapotado, com cachecol, botas, chapéu. Sua voz, misturada com a fumaça que se formava no ar gelado, continuava a ordenar:
- Sigam-me, vamos subir morro!
E lá foram todos, numa procissão trôpega e trêmula, tiritando em silêncio. Não deu outra: metros à frente e minutos depois, ninguém mais suportava a friagem e os pés se ferindo sobre as pedras agudas da trilha. O guru ergueu o braço:
- Podem parar. Sabem qual é a lição espiritual desta noite?
A turma, reunida num só bolo humano para fins de aquecimento, se entreolhava, sem arriscar resposta.
- A lição é uma só: deixem de ser bobos. Não aceitem tudo que uma pessoa manda fazer, sem questionar. Onde vocês estão com a cabeça, pô? Podem voltar para as barracas.
Hoje em dia a maioria anda aceitando tudo. Qualquer asneira que aparece na internet é engolida e replicada. Factoides, boatos, notícias plantadas – a primeira versão vira verdade. Não há mais espaço para o contraditório, para a reflexão. E se diante de uma dessas bobagens a gente resolve contradizer ok, mas... somos tachados de reacionários.
Então, que venha o Simancol, em doses cavalares, nas caixas d’água, alcançando toda a população. Sim, viva o Simancol, remédio infalível para aqueles que não se mancam. É hora de ressuscitar a velha e comprovada fórmula.
Fernando Fabbrini é roteirista, cronista e escritor, com dois livros publicados. Participa de coletâneas literárias no Brasil e na Itália e publica suas crônicas também às quintas-feiras no jornal O TEMPO.

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