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A crise é sempre um período de grandes dificuldades, para uma pessoa ou para um grupo.
Quem tem fé compreende que a existência está relacionada ao transcendente, ao Sagrado, a Deus.
Por Tânia da Silva Mayer*
Não há dúvidas de que vivemos em tempos difíceis. Nossos valores e crenças são confrontados o tempo todo. Com eles, diante da maldade que nos assombra, a esperança se esfarela tornando-nos pessoas tristes e amedrontadas. Uma síndrome de desesperança ganha força, sobretudo, entre aqueles que cultivaram sonhos e utopias, mas que, agora, assistem atônitos às tragédias humanas noticiadas, a todo instante, aos ouvidos que acompanham a vida.
Enquanto alguns roem as horas do tempo sem perceberem o despautério humano na contemporaneidade, aqueles que se acostumaram a acreditar na realidade de um mundo novo livre da maldade sentem ruir as estruturas nas quais se fundamentaram para construir o sentido de suas existências. A esse sentimento de desmantelamento do sentido, seja no âmbito do indivíduo ou no do grupo, é que chamamos de crise ou crises.
A crise é sempre um período de grandes dificuldades, para uma pessoa ou para um grupo. É um momento em que verdades, valores e crenças são colocados em xeque, sobretudo pela existência de compreensões, situações e posturas totalizantes. Tudo isso faz os tempos de crises serem depressivos, ou seja, tempos em que o que se encontra na superfície deixa de ter importância, fazendo com que se busque profundidade e sentido: das relações; da política; da economia; das sociedades; da existência; da fé; etc.
Por isso, por proporcionarem a descida da superfície até as profundezas, os tempos de crises são períodos oportunos de revisão, superação e retomada do equilíbrio no qual a vida se fundamenta e desenvolve. Sabiamente, o poeta contemplativo convocava a fazer “da interrupção um caminho novo; da queda, um passo de dança; do medo, uma escada; do sonho, uma ponte; da procura, um encontro”. Nessa perspectiva compreendemos que os tempos de crises, embora sejam de muitas tribulações, são tempos em que o sentido das coisas pode ser restabelecido, e isso pode depender, ou não, dos nossos esforços.
Quem tem fé compreende que a existência está relacionada ao transcendente, ao Sagrado, a Deus. A tradição judaico-cristã sempre se mostrou consciente das relações humanas e das relações humano-divinas. Justamente por compreenderem Deus como aquele que se relaciona com seu povo eleito é que os crentes sabem-se não abandonados às intempéries da história. Os que creem também compreendem que o Deus Libertador é aquele que vê as suas aflições, ouve os seus clamores, conhece os seus sofrimentos e não hesita vir ao seu encontro para libertar-lhes das mãos dos opressores (cf. Ex 3,7-8). Contudo, Deus que liberta não é o dominador das alturas, longe demais para ser alcançado, misterioso demais para ser encontrado. Deus que liberta é proximidade e revelação, é presença que provoca, convoca e envia, tudo isso por sua livre e gratuita vontade. A tese de que Deus existe em razão das nossas procuras é, facilmente, contrabalanceada pela compaixão Dele, por meio da qual, desde a eternidade, Ele traçou uma rota para encontrar-se e relacionar-se com as suas criaturas.
Nessa consciência é que tem lugar a procura por Deus e um possível encontro com Ele nesses nossos tempos de crises. Ele que nos pastoreia e guia-nos em nossa história, sem, contudo, furtar-nos a liberdade, é a fonte na qual matamos nossa sede, inclusive a de sentido e na qual redobramos as forças para fazer da queda um passo de dança, para fazer das crises um momento de construir novas pontes que nos levem a lugares, pessoas, relações e sociedades justas e pacificadas. Não obstante, a história do povo de Deus nos mostra que homens e mulheres procuraram e encontraram-se com Deus em tempos de grande dificuldade para o povo. Foi assim no processo da escravidão, para a libertação. Foi assim no exílio, para o repatriamento na Terra. Foi assim na cruz, para a ressurreição. Foi assim nas perseguições romanas, para a liberdade da práxis cristã.
A história do povo de Deus e do Novo povo, renascido na Cruz, ensina-nos que Deus é aquele que se expõe e vem ao encontro do povo sofredor e, também, de cada pessoa que sofre. Por isso é que tem razão irmos ao encontro de Deus, porque Ele quer vir ao nosso encontro para experimentar-nos. E os tempos críticos são espaços profícuos de uma experiência de Deus, precisamente porque, desapegados das falsas seguranças, estamos livres para experimentá-lo como Alguém que é um amigo e companheiro fiel. Destarte, apenas uma experiência de Deus, e do Deus que se revela como Amor na Cruz, é que salvará os que creem da desesperança e do medo internalizados pela destemperança histórica na contemporaneidade. Ademais, uma experiência do Deus da Cruz não fará com que fujamos da história, numa espécie de espiritualidade desencarnada, mas ensinará como enfrentar e superar os tempos de crises, como protagonistas de um tempo novo em que há sentido para se viver.
*Tânia da Silva Mayer é Mestra e Bacharela em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje); Cursa Letras na UFMG. É editora de textos da Comissão Arquidiocesana de Publicações, da Arquidiocese de Belo Horizonte. Escreve às sextas-feiras.
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