terça-feira, 12 de julho de 2016

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Estaremos, um dia, preparados a acolher a Boa-nova de um Deus “fraco”?
Pondo Deus como fundamento, nossa trama racional se torna mais robusta e consistente
Pondo Deus como fundamento, nossa trama racional se torna mais robusta e consistente

Por Sinivaldo Silva Tavares, OFM*

O estudioso da técnica Lewis Munford, em seu sugestivo livro Technics and Civilization, discorre sobre a fascinante história de um aparelho singelo, porém emblemático: o relógio. Mais do que a locomotiva, ou a máquina a vapor, talvez essa máquina do tempo seja a que melhor represente o capitalismo industrial e, por extensão, a Modernidade. De fato, a Modernidade forjou a imagem de um mundo mecânico, no seio do qual também o ser humano passou a ser interpretado como uma máquina, na sagaz análise de Bergson, uma “espécie de relógio cujas peças se ajustam perfeitamente umas às outras. Tudo nele é mecanismo. E quando, com os hábitos científicos, consideramos o ser humano, somos, necessariamente, levados a vê-lo como um mecanismo no meio de outros mecanismos, como ser que funciona automaticamente”.

Recentemente, referindo-se a este fenômeno da redução do ser humano a uma máquina, o filósofo Umberto Galimberti assim se exprimia: “Tudo começou com Descartes que, com um lance surpreendente e inesperado, transformou o nosso corpo em organismo, ou antes, naquela somatória de órgãos suscetíveis de serem indagados como se indagam os componentes de qualquer máquina. [...] Mas, o efeito final foi a objetivação do nosso corpo, sua abissal distância de nós, porque, no corpo reduzido a organismo que a ciência descreve, eu não me reconheço, porque é um corpo que não me revela, não me representa, não me exprime”.

Se se considera o relógio como metáfora do mundo e do ser humano nele situado, talvez se entenda melhor por qual motivo Leibniz, ao excogitar a idéia do Deus cristão como responsável e garante de toda a engrenagem moderna, o tenha concebido mediante a plástica metáfora do relojoeiro.

Com o advento da Modernidade, Deus é posto como fundamento e conseqüentemente, passa a ser funcional à certeza e à garantia da configuração racional lógica e explicativa do ser humano. Não deixar nada infundado, subtrair as criaturas de sua precariedade, reforçando e afirmando nosso domínio sobre elas: eis o intento do projeto moderno. Pondo Deus como fundamento, nossa trama racional se torna mais robusta e consistente. E assim se efetua o progressivo triunfo da razão no Ocidente. A bondade divina se torna expressão da racionalidade, vale dizer, ulterior garantia da índole veritativa de nossas faculdades e da racionalidade do mundo. Para os filósofos modernos, sobretudo Descartes e Leibniz, a bondade não remete à liberdade, mas à racionalidade. Porque sumamente bom Deus é concebido como a garantia da estabilidade das leis do cosmos e também da índole não enganadora de nossas faculdades cognoscitivas. Bondade e verdade se identificam na parábola da Modernidade como realidades objetivas e vinculantes. Nessa perspectiva, a providência divina é interpretada como racionalidade superior. Em vez de servir a Deus (frui Deo), a Modernidade se serve de Deus (uti  Deo).

Com base em tal pressuposição, o paradigma moderno encerra a seguinte lógica: constrói-se, antes, uma imagem hipotética de um deus submisso a verdades eternas e imutáveis para, depois, submeter-lhe todas as coisas, inclusive o ser humano. Este último passa a compreender o conjunto das relações em termos de verdade ou falsidade. A Modernidade acabou concretizando uma antiga tentação: limitar o próprio Deus, colocando freios à sua atividade criadora. O ser humano moderno parece alimentar a ilusão, para todos os efeitos, interesseira, de que também para Deus seria melhor obedecer do que mandar. E que se a vontade de Deus não se submete a um princípio eterno e imutável, acabará no arbítrio despótico.

A parábola do Ocidente tem-se dado historicamente como um caso de identificação com a busca da verdade: concebida em seu caráter epistêmico (gregos), como verdade teológica (medievais), em seu caráter transcendental (modernos) ou tecnocêntrico (contemporâneos). E a verdade foi pensada pela racionalidade ocidental em termos de adequação entre a proposição e a coisa (veritas est adaequatio intellectus et res). E por ter sido pensada como conformidade é que ela acabou sendo também reduzida a uma espécie de objeto à mercê do sujeito pensante e, portanto, sua propriedade.

Talvez essa seja a principal razão pela qual a verdade tenha sido quase sempre imposta de maneira intolerante e, portanto, excludente em relação ao outro de si. De fato, o não verdadeiro, nesta configuração precisa, é tido sem mais como falso. Dado o seu caráter incontestável, a verdade assim concebida expulsa toda não-verdade, interpretada como falsidade. O entendimento só é concebido no âmbito da verdade. Daí o surgimento das ideologias e das cortinas de ferro, como expressão de uma redução da realidade à contraposição de pólos antagônicos e mutuamente excludentes. No interior desses processos predominam o contraste, a competição e a desconfiança. Talvez isso explique um dos mais vistosos paradoxos do “nosso tempo”: a constatação de que, apesar da unanimidade com relação aos critérios e resultados do conhecimento técnico-científico, não conseguimos criar as condições mínimas para uma cultura de paz.

Entendida, sobretudo, como expressão da consciência pensante, a verdade se torna motivo de orgulho e não de gratidão, vindo a se converter, conseqüentemente, em fonte de direitos e de reivindicações em benefício próprio, gerando, por sua vez, situações de contrastes ideológicos, de fundamentalismos e de toda sorte de violência. A verdade assim concebida dá segurança porque, em última instância, confere poder. Do ponto de vista etimológico, o termo veritas se constrói sobre a raiz indo-européia ver-, cujo significado é abrigo, refúgio e remédio face à experiência da admiração, do estupor e do assombro diante do insensato, do inapreensível, do ingovernável. Segundo essa compreensão, o pensamento ocidental nasce assediando a contingência, experimentada como âmbito do casual, do imprevisível e do inédito. Como superar essa angústia mortal? Dominando-a mediante a verdade, pondo-se ao reparo e remediando o caráter de assombro da realidade. Ao se exprimir através da universalidade e da necessidade, a racionalidade ocidental se dilata, expandindo seus tentáculos sobre o real, agarrando-o de maneira voluptuosa. Este intento que se faz presente na aurora da filosofia encontra na ciência e na técnica sua expressão mais plena.

O Ocidente, enquanto terra da razão, tem se revelado como a terra do poder dominação. Segundo o aforisma de F. Bacon, “conhecer é poder” (nosse est posse). Nesse sentido, o triunfo da ciência e da técnica constitui o natural epílogo da aventura ocidental como terra do domínio, sonho esse perseguido tenazmente desde o seu nascedouro. Não por acaso, ocidente vem de occidens, que significa: ocaso, morte.

Gostaríamos de, ao final, fazer ecoar as palavras de dois representantes de nossa época: o teólogo e mártir Bonhöffer e o filósofo Gianni Vattimo.

“Deus é impotente e fraco no mundo

e exatamente assim, somente assim,

ele está conosco e nos ajuda.”

(D. Bonhöffer)

“Só um Deus fraco pode nos salvar agora.”

(Gianni Vattimo)

*Frei Sinivaldo S. Tavares, OFM é doutor em Teologia Sistemática pela Pontificia Università Antonianum, Roma. Durante treze anos, professor de Teologia Fundamental e de Teologia Sistemática na Faculdade de Teologia do Instituto Teológico Franciscano, Petrópolis. Desde 2012, professor de Teologia.

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