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Porque temos mais medo a partir do momento em que cruzamos o Chuí.
Vemos Iemanjá se espalhando por praias uruguaias e gaúchas e percebemos que resistem tradições.
Porque desde o Uruguai venho subindo serra e descendo serra, porque sei de caminhos diretos e nem tão retos e também sei de caminhos alternativos onde a vista é mais bonita, a contemplação é segura e a velocidade desacelerada. Porque esbarrei em tanta gente real, nada virtual, que diz bom dia, “buenas” e “que tal”. Porque quase nada vi de televisão e muito menos da tv brasileira.
Porque desde o extremo sul parece que pouco a pouco, subindo o mapa, a cordialidade vai se desfazendo , as desesperanças vão se adensando e o medo dos vizinhos se torna mais palpável. Porque temos mais medo a partir do momento em que cruzamos o Chuí e toda aquela confusão comercial da fronteira com flanelinhas que nos vendem espaços para nossos carros e propagandeiam ofertas para lojas que vendem o que não precisamos.
Porque desde o extremo sul cruza-se o banhado do Taim com sua beleza rústica e suas centenas de capivaras mortas à beira da rodovia e vai se percebendo que a deseducação é a grande chaga pátria que nos condena ao subdesenvolvimento e a manipulação por todo e qualquer tipo de larápio político.
Porque vemos Iemanjá se espalhando por praias uruguaias e gaúchas e porque percebemos que ainda resistem boas tradições de hospitalidade e de comidas. Porque cruzamos um velho pescador que corre atrás de corvinas negras desde a praia de Hermenegildo e porque conversamos em Cabo Polonio com um velho comerciante que coleciona velhos acordeões mas não toca uma nota sequer para seus clientes do mundo todo. Ele prefere os franceses e não gosta dos israelenses e pode dar meia dúzia de motivos para isso.
Porque entramos numa cafeteria em Rio Grande, à espera de pegar uma balsa para São José do Norte e enquanto jantamos e tomamos um vinho da casa vemos na mesa ao lado um casal sem agasalhos e sem frio a trocar e tocar afinidades entre olhares languidos, vídeos de Youtube e um único e singelo pacote de salgadinhos.
Por fim, em Capão da Canoa , um dono de pousada pouco afeito ao tema mas fanático por jipes fala com alegria de sua próxima viagem rumo ao Pantanal. Me pede dicas e dou com satisfação. Em troca queria que ele apenas me desse a receita de como preservar sem máculas meu pequeno pacotinho de felicidade uruguaia que trago na mochila de lona. Nem peço a receita pois percebo que em sua alegria quase juvenil em partir com a família para a viagem de férias ele está a buscar a alegria na Transpantaneira. Eu, escorrego na rima e viso não descer a ribanceira trazendo dentro de mim largos pedaços da terra uruguaia tão linda quantos os mais lindos textos de Onetti ou Galeano.
*Ricardo Soares é diretor de tv, escritor e jornalista. Escreve às segundas e quintas no DOM TOTAL.
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