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A tecnologia deu a todos a possibilidade real de divulgar em grande escala qualquer coisa.
Com o desenvolvimento dos processos digitais tudo o que descrevi praticamente perdeu o sentido.
Por Max Velati*
Comecei a escrever e publicar livros no começo da década de 90. A Internet e as publicações digitais ainda não estavam disponíveis e todo o processo autor-editora-livraria corria de maneira analógica e dependia de variáveis que hoje quase não fazem mais sentido.
Depois de sofrer debruçado sobre o papel em branco, depois de escrever e reescrever até considerar pronto o original, eu enviava um pacote cuidadosamente preparado para uma ou mais editoras, tomando o cuidado de investigar antes pelo catálogo se teriam interesse em obras daquele gênero e naquele estilo. A resposta costumava chegar quatro ou cinco meses depois. Assim como um ano equivale a sete para os cães, posso dizer com segurança que quatro meses são dezenove anos e vinte e oito dias para o autor iniciante. Uma carta recusando o original significava que você tinha que melhorar, estudar mais, escrever melhor ou entender mais profundamente as editoras, os editores e os possíveis leitores da sua obra.
Durante esse longo tempo de espera a editora estava tomando providências e precauções. O original nesta época era passado a um leitor profissional contratado para isso ou alguém da equipe regular da editora. O leitor avaliava o texto e produzia um relatório que sugeria ou não a publicação e registrava devidamente os argumentos que suportavam esta análise. A partir daí a editora avaliava custos de produção e espaço no mercado. O resultado final destas análises de qualidade do texto, custo editorial e chances no mercado significava sinal verde ou vermelho para a produção. Escritores renomados ou já testados pelo mercado recebiam (e recebem) algum tipo de adiantamento e autores iniciantes em geral tinham que esperar (e ainda têm) o desempenho comercial da obra antes de ver a cor do dinheiro. Isso significava aguardar em geral um ano até ver o livro produzido. E para maior desilusão com a carreira, receber a partir daí cheques macérrimos de três em três meses. A matemática era e ainda é: 10% das vendas para o autor, sendo que editora, distribuidora e livraria embolsam respectivamente cerca de 30%.
Ao descrever este processo quero destacar que nestas circunstâncias publicar uma opinião sobre qualquer assunto exigia submeter o trabalho a análises externas, independentes, realizadas em geral por profissionais. Tudo se resumia a definir o mérito e a qualidade da opinião e decidir se ali estava justificado todo o esforço editorial e o custo industrial da edição. Em resumo: publicar um livro custava dinheiro e o processo era cauteloso, profissional, analisando tudo em termos de investimento. É claro que muita idiotice foi publicada seguindo estas etapas, mas um Everest de originais ficava retido nestas malhas. Não falo apenas das obras sem qualidade literária, mas de ensaios absurdos, criminosos, redigidos por autores irresponsáveis, sem escrúpulos, bom gosto ou contato com a realidade.
Com o desenvolvimento dos processos digitais tudo o que descrevi praticamente perdeu o sentido. A publicação digital, seja com o e-book, blogs ou a simples postagem de textos nas redes sociais, inaugurou a Era de Ouro da Sandice. A tecnologia deu a todos e a qualquer um a possibilidade real de publicar e divulgar em grande escala qualquer coisa, qualquer bobagem. Nessas novas plataformas uma asneira colossal ganha status de opinião pelo simples registro em letra de forma. De um sistema que possuía redes e filtros – e cometia assim muitas injustiças, reconheço – passamos a um sistema sem nenhum tipo de controle de qualidade, sensatez ou isenção. Demos a benção para que qualquer racista, xenófobo ou qualquer outro tipo de imbecilidade radical tenha assegurado o seu espaço. Fornecemos às legiões de imbecis espalhados pelo globo caixotinhos e microfones para uso individual. Isso ocorre porque entendemos que todo mundo tem direito a ter uma opinião sobre qualquer coisa. O problema é que consideramos isto um direito de todos apenas em teoria. Na prática aceitamos ideias e o direito de tê-las apenas se estiverem a favor das nossas convicções, do contrário esta liberdade de expressão passa a ser inaceitável; merece e será atacada sem restrições, pois estes ataques estão protegidos pelo meu sagrado direito de expressão. O meu direito e só meu. A lógica perversa é a de que posso tudo e nesta interpretação marota de liberdade de expressão posso até declarar uma sentença de morte intelectual aos que pensam diferente de mim. Chamo de macaco, despejo na rede minha homofobia, louvo crimes e criminosos e faço tudo isso sob a proteção do manto bordado a ouro que chamamos de liberdade de expressão. Meu ódio, minha insanidade, minha ignorância, minha perversão podem circular livremente pelos canais de comunicação. Depois de apertar o “send” ou a descarga, o produto nojento do meu organismo viaja pelos canais da rede até o mar de dados que chamamos de Internet. Ai de quem ousar deter este fluxo.
Na época em que publicar um livro era de certa forma vencer um concurso, aquilo que era divulgado na página impressa consistia no produto final de um processo mais ou menos inteligente. Podemos dizer que era uma conclusão com certo mérito, revestida de alguma respeitabilidade. Hoje, a opinião publicada não é mais resultado de nenhum processo a não ser a vontade caprichosa do autor e um teclado disponível. Emitida para o mundo, viajando em bits e na letra de forma, qualquer sandice hoje é uma opinião e atrai imbecis segundo a alquimia de que semelhante atrai semelhante. Podemos culpar por isso as leis físicas de propagação. Se jogo um anel de ouro em um lago vou criar ondas e o mesmo acontece se eu cuspir. Não faz diferença para o lago. Ao redor das ideias mais absurdas assim propagadas formam-se grupos com afinidades tresloucadas e começa então o cyberbulling, a trollagem, o covarde linchamento cibernético e Darwin no ciberespaço está comprovado. Os mais aptos a este meio são aqueles sem compromisso com o saber, com a língua, com a verdade, com o respeito ou com a reflexão. O ataque violento indica força e deve aniquilar os frágeis, os que têm incertezas, os que ainda estão buscando e sobretudo, aqueles que não estão preparados para um combate sem regras ou moral. Esqueça a razão, a moderação e a sensatez. Ignore a profundidade. O jogo é no raso. Vence quem disparar o palavrão primeiro, quem ofender com fúria animal, quem fizer jorrar mais ódio e sangue para a alegria das arquibancadas.
Assim como no Direito existe a crença de que na dúvida é melhor soltar um criminoso do que condenar um inocente, no estado atual das coisas é melhor liberar o Monstro da Insensatez do que calar qualquer voz. Nesta terra onde por medo da censura todo crime é permitido, o debate justo e elegante, que antes servia para testar a resistência das ideias, morreu e foi sepultado na vala comum.
Mas isso é só a minha opinião.
*Max Velati trabalhou muitos anos em Publicidade, Jornalismo e publicou sob pseudônimos uma dezena de livros sobre Filosofia e História para o público juvenil. Atualmente, além da literatura, é professor de esgrima e chargista de Economia da Folha de S. Paulo. Publica no Dom Total toda sexta feira.
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