sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Religião e Equidade de Gênero

domtotal.com
O desafio do amar em tempos de guerra.
Ivone Gebara afirma que
Ivone Gebara afirma que "A religião na sua base originária é materna, é protetora e aconchegante".

Por Lilian Conceição da Silva Pessoa de Lira*
O prognóstico weberiano do início do século XX, sobre o “desencantamento do mundo”[1] parece não se cumprir no contexto brasileiro. Vê-se um “encantamento do mundo” e a busca por alternativas que aliviem a existência em meio a um contexto de crises, violências, desesperança e desumanização. Ao mesmo tempo, os cenários religiosos têm sido também justificativas para explicar os contextos de conflitos, violência e guerra nos dias atuais.

Considerando a religião como fenômeno cultural, lugar a partir do qual pessoas e grupos constroem possibilidades de dar significado à sua existência na sociedade; reconheço, assim como Martelli, que “a religião é depositária de significados culturais, pelos quais indivíduos e coletividade são capazes de interpretar a própria condição de vida, construir para si uma identidade e dominar o próprio ambiente”[2].

Se de um lado a vocação única de todas as religiões é unificar a humanidade a partir da adoração a Deus; de outro, é preciso considerar que referências à religião distinguem duas realidades: a fé e as tradições cumulativas[3].  Nesse último caso, a vocação é oferecer condições para que a fé possa se expressar e assim cumprir o sentido do termo religião: unificar a humanidade a partir da adoração a Deus.

O Cristianismo, como religião, é também uma construção cultural fruto de tradições cumulativas, que como outras religiões, carrega marcas da(s) cultura(s) que o forjou(aram). Como religião, o Cristianismo reúne (ou se divide) em diversas tradições que não basta apenas classificar como católica e protestante, como coloquialmente se convenciona mencionar. Dentro de cada uma dessas específicas tradições há um leque de tradições que compõem o que entendemos por Cristianismo.

 O que essas diversidades de tradições cristãs têm em comum?  Como principal ponto de convergência está o seguir a Jesus. No entanto, seguir a Jesus implica, necessariamente, em aprender do testemunho de vida, paixão, morte, ressurreição e ascensão, e corporificar seus mandamentos: amar a Deus e amar às pessoas. E amar foi, é e continuará sendo o maior desafio à vida cristã.

Amar nos constrange a enxergar nas pessoas, próximas ou não, que cada qual delas é imagem e semelhança de Deus (Gn. 1:27). E se todas as pessoas são imagem e semelhança de Deus, e se em Jesus: “Não há judeu nem grego, escravo ou livre, homem ou mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gl.3:28), torna-se imperativo reconhecer que não se deve fazer acepção de pessoas (Tg. 2:9b). No entanto, a História da Igreja e o cotidiano da Igreja desvelam uma realidade na qual a acepção se tornou regra e não exceção, especialmente no que diz respeito às desigualdades no tratamento dado às mulheres e aos homens.

Nesse cenário tão real do cotidiano das comunidades cristãs, que de tão comum se torna banalizado, ser mulher e liderança cristã num contexto patriarcal e misógino é um desafio que macula o testemunho da Igreja e que contraria o mandamento do Amor (sem acepção). Mas o que fazer diante dessa realidade? Antes de buscar responder à questão acima, entendo como mais urgente elucidar o que é amar.

Nesses cenários religiosos e contextos de conflitos (estes mencionados nas primeiras linhas desse breve texto), entender o que significa amar continua sendo o maior desafio da atualidade. Recorro ao poético escrito de James C. Hunter, quem, ao meu ver, melhor interpretou o texto que o Apóstolo Paulo escreveu aos Coríntios (I Cor. 13), explicando que o amor é comportamento. De modo que não basta dizer “Amo você!” sem se comportar como quem de fato ama. E amar pressupõe respeitar.

Como decorrência do amor, ressalto aqui dois elementos: “acolhimento” e “alimento”, como características comumente ligadas às práticas das mulheres, que muito se aproximam do cumprimento de um dos nossos muitos papéis: a maternidade. Ivone Gebara afirma que “A religião na sua base originária é materna, é protetora e aconchegante”[4]. Isto, no entanto, não quer significar que os homens não sejam importantes, mas apenas quer afirmar que este pressuposto religioso está na base do sentimento religioso. Gebara afirma ainda que “As mais antigas representações religiosas da humanidade são femininas ou mais precisamente são projeções das experiências femininas de maternidade e fertilidade. [...] Mães e religião indicam uma cumplicidade originária marcada por muitas contradições.”[5]

Acolher e alimentar são expressões de cuidado e respeito. E respeitar deve ser verbo conjugado por todas as pessoas que se dizem cristãs, ou, ainda melhor, que desejam ser reconhecidas como cristãs, tanto para a convivência intra quanto as relações extra Cristianismo. Das relações do Cristianismo com outras religiões, baseadas no respeito mútuo, podem ser forjadas novas relações humanas que inaugurem novos tempos.

Reconhecer o pluralismo de princípios fundadores da existência humana promove uma melhor compreensão do ser humano sobre si mesmo, bem como possibilita que sejam elaboradas ações e políticas de diálogo que transformem as relações humanas violentas em relações humanas de cuidado mútuo[6]:

[...] Por isso, o apelo das sabedorias éticas de todas as culturas humanas sempre insistiu sobre a necessidade de olhar o outro, a outra, de tomá-los com meus semelhantes, de descobri-los como meu outro eu, como meu próximo, sem a qual a minha própria vida não se realiza. E, ultimamente, este princípio de interdependência que veio conosco como fruto da evolução da vida, princípio de manutenção plural de todas as vidas, expande-se em consciência em relação a todos os outros viventes e necessita vitalmente deles. Então, pode-se dizer que a pluralidade de princípios poderia até se reduzir, em certo sentido, à unidade expressa através do cuidado pela vida.  [...] Creio que a questão do pluralismo nos convida de novo ao pensamento, à proximidade com sabedoria, à amizade com o diferente, com o que está próximo e distante, como expressões da espantosa complexidade da vida. E isto vale também para as teologias porque, em última análise, sua certeza tem a ver com a fraca, incerta, plural e sempre renovável aposta no amor que nos sustenta: “Onde houver amor, Deus aí está ...”.[7]

O amor e o exercício de pensá-lo a partir da vida das mulheres, em particular das mulheres negras, para reconhecer, como afirma bell hooks[8], que “O amor cura. Nossa recuperação está no ato e na arte de amar."[9]

Retomo a questão antes proposta, sobre o que fazer diante da realidade de violência decorrente das desigualdades, afirmando a relação direta das duas realidades, como afirma Gebara, ao destacar as consequências do não respeito ao pluralismo, quando postula

que o esquecimento desse pluralismo pelas diferentes instituições, pluralismo expresso em parte através da relação entre feminino e masculino, visto que somos nós mulheres e homens que o reconhecemos e falamos dele, foi em parte a causa da extrema violência em que vivemos nos últimos séculos. Uma parte de nós mesmos, o masculino se afirmou como princípio único tentando não só ocultar o feminino, mas agredi-lo e destruí-lo na existência concreta das instituições sociais.[10]

Como mulher negra, teóloga feminista e clériga anglicana, enxergo na promoção da equidade de gênero a partir da religião, uma alternativa necessária para pensarmos outras possibilidades de relações humanas.

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[1] WEBER, Max: Ciência e Política: Duas Vocações, São Paulo, Editora Cultrix, 1993, p.13.

[2] MARTELLI, Stefano. A religião na sociedade pós-moderna. São Paulo: Paulinas, 1995, p. 34.

[3] SMITH, Wilfred Cantwell. O sentido e o fim da religião. São Leopoldo: EST e Sinodal, 2006.

[4] GEBARA, Ivone. A mobilidade da senzala feminina. Mulheres nordestinas, vida melhor e feminismo. São Paulo: Paulinas, 2000a, p. 101.

[5] GEBARA, 2000a, p. 101.

[6] GEBARA, 2010, p. 26.

[7] GEBARA, 2010, p. 26.

[8]  A grafia das inicias minúsculas respeita a forma como a autora faz opção. Gloria Jean Watkins, bell hooks, como gosta de ser chamada e como escreve seu próprio nome, é escritora ativista norteamericana, muito lida e citada no meio da militância feminista negra.

[9] HOOKS, Bell. Vivendo de amor.  Tradução de Maísa Mendonça. Disponível em: . Acesso em: 11 ago. 2016.

[10] GEBARA, Ivone. Vulnerabilidade, justiça e feminismos: antologias de textos. São Bernardo do Campo: Nhanduti, 2010, p. 25.

Leia também:

Mulheres e Igreja: o lugar feminino na vida eclesial

Jesus e as mulheres nas narrativas dos Evangelhos

A invisibilidade das mulheres nas religiões​

Revda. Lílian


*Presbítera da Diocese Anglicana do Recife, da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil (IEAB). Doutora em Teologia, na área “Religião e Educação”, pela Faculdades EST, São Leopoldo/RS (2014). Atualmente, bolsista CAPES no Programa de Pós-Graduação em Educação, Culturas e Identidades (PPGECI), da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e Fundação Joaquim Nabuco (FUNDAJ). E-mail: liliancsilva13@gmail.com.

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