terça-feira, 6 de setembro de 2016

O amor nos tempos do golpe

 domtotal.com
O jornalismo (televisivo e escrito) já se tornou obra de ficção.
Tempos difíceis nos aguardam e é inevitável: você não vai se ver representado na televisão.
Tempos difíceis nos aguardam e é inevitável: você não vai se ver representado na televisão.

Por Alexis Parrot*

Era inevitável: a televisão não vai acompanhar o inicio da nova temporada de manifestações públicas contra o governo - agora efetivo, porém, golpista.

Nas novelas, nada sobre o Brasil ou brasileiros - só cabe o idílico ou o escapismo; Saruê de um lado, Moisés de outro (será que a Record nunca vai entender que é a caminhada atual de outro barbudo - independente se você é ou não discípulo dele - a que importa hoje para o país? Nada contra o salvo das águas mas, continuar restrito ao Antigo Testamento em um mundo que já conhece os Evangelhos e a Teologia da Libertação, mostra de forma descarada que não se trata de uma opção religiosa, e sim política). 

A crônica da morte anunciada da EBC ganhou fatal novo capítulo com a medida provisória que determina a extinção de seu Conselho Curador. Com isso, a sociedade perde o direito de representação e voz dentro da instituição. O mais abrangente projeto de comunicação pública já executado no país é jogado no lixo para ceder lugar para uma ação entre amigos - todos homens, de idade e brancos; não exatamente uma ode à diversidade. A programação da TV Brasil certamente perderá o que tem de independente e de representatividade para acompanhar essa triste tendência.

E o jornalismo (televisivo e escrito) já se tornou obra de ficção, cada vez mais comparável com os  programas de pastores evangélicos. Ambos assaltam a verdade; e esses últimos, se puderem, também nossos bolsos - cada vez mais carcomidos.

O telejornal mais assistido de todos, tem antes um bispo de topete grisalho, não um apresentador, à frente não de uma bancada, mas de um púlpito. É daquele tipinho de funcionário que se veste da roupa do patrão, o pior de todos os tipos de fariseus: o boneco de ventríloquo que acredita ser o ventríloquo. William Bonner acha que é o âncora do Jornal Nacional mas na verdade é só uma fraude; como a PM de São Paulo - cada um violento e absurdo à sua maneira, mas ambos covardes e desprezíveis.

Outro personagem dessa estirpe é o presidente ora efetivado. Suas péssimas habilidades para as relações públicas o fazem candidato perfeito para trabalhar nas novelas pós-diluvianas da Record, porque o tornam capaz de produzir até milagres; o mais recente, a multiplicação dos descontentes. Se ele diz 40, surgem 40 mil, 100 mil nas ruas. Está tão cheio de si que não pensa antes de falar; acredita que o cargo recém-usurpado o desobriga do bom senso. Se Marcela amasse o homem e não a instituição - ou abstração - com que se casou, era a hora de interferir, sugerir, influenciar: "Michel, assim não está bom..."  ou "Amor, cala essa boca", se for mais diretona.

Porque amor é parceria e é missão. Não que os canais de televisão tenham alguma obrigação de serem parceiros do nosso povo, por que teriam? O que lhes foi outorgado, afinal? Apenas uma concessão pública... Se chegamos ao ponto de cisão em que estamos - e que vem num crescendo exponencial desde a campanha eleitoral de 2014 - a grande imprensa e a televisão brasileira têm um papel de protagonismo nesse jogo de ódio. No último sábado já houve a primeira morte: um manifestante contra o golpe foi deliberadamente atropelado por um raivoso pró-golpe, em Ribeirão Preto. Os créditos a quem os merecem - e ao vencedor, as batatas.

O pior perdedor é o que não sabe perder. Mas pior ainda é quem não sabe ganhar. É justamente essa a situação que vivemos hoje: ganharam a batalha mas não foi o suficiente, há que se pisar naqueles que estão (e continuarão) nas trincheiras opostas; são pequenos na vitória, como são, de resto, na vida . Deviam ver menos televisão e ler mais Elizabeth Bishop - se perder é uma arte, ganhar também deve ser.

Tempos difíceis nos aguardam e é inevitável: você não vai se ver representado na televisão. Se você tem a sorte de estar apaixonado, pendure-se durante horas no telefone com a pessoa amada, se ela está distante. Se próxima, inunde-se dela. Exercite esse amar o tempo todo - para que ele se espraie e contamine. Nos tempos do golpe, amar é o que nos resta. Para resistir, reconstruir, recomeçar.

*Alexis Parrot é diretor de TV e jornalista. Escreve às terças-feiras sobre televisão para o DOM TOTAL.

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