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Fazer caridade é permitido, desde que o sistema gerador da pobreza não seja questionado.
São João Crisóstomo exortava ao cuidado dos pobres: "Cristo anda sem casa e sem pátria".
Por Élio Gasda*
“Quando dou de comer a um pobre, me chamam de santo. Mas quando pergunto por que razão os pobres não tem comida, me chamam de comunista” (Dom Hélder Câmara). Bastaram poucas frases num documento dedicado à Evangelização para que papa Francisco fosse acusado de comunista por alguns conservadores. O que surpreende não é tanto a superficialidade das acusações, mas o esquecimento no qual foi mergulhada uma parte central da Tradição da Igreja, aquela que vai dos Profetas bíblicos, alcança seu ponto mais alto em Jesus, continua nas exortações dos Padres da Igreja e chega à Doutrina Social do atual pontificado.
Falar dos pobres e fazer caridade é permitido, desde que o sistema gerador da pobreza não seja questionado. A financeirização da economia, os juros da divida, o ajuste fiscal, a alta da bolsa, o desemprego, são realidades que temos que aceitar enquanto efeitos colaterais e ficar calados? Quem levanta a voz em defesa das ocupações urbanas, dos sem terra, do povo da rua, das mulheres pobres, dos negros, dos povos indígenas e engrossa os protestos contra a PEC 241 é tachado de subversivo e comunista. Mas já no século XIX, Frederico Osanam exortava: “sacerdotes, não vos assusteis quando os ricos, irritados por vossas palavras e atitudes, vos tratarem de comunistas” (Carta Às pessoas de bem).
Não surpreende que hoje palavras como estas soem subversivas: “Aprendamos, pois a honrar a Cristo como ele quer ser honrado. Cristo não tem necessidade de cálices de ouro, mas de almas de ouro. Que importa ao Senhor que sua mesa esteja cheia de objetos de ouro se ele se consome de fome? Sacia primeiro sua fome e se sobra, adornai sua mesa. Ou vais fazer um cálice de ouro e depois negar-lhe um copo de água? Cristo anda sem casa e sem pátria. Tu não O acolhes porque te distrais adornando paredes e colunas”. A citação é extraída de uma homilia sobre o Evangelho de Mateus do bispo e doutor da Igreja São João Crisóstomo.
Nos pobres é preciso ver a presença de Jesus. A insistência do papa Francisco em repetir que o protocolo com base no qual seremos julgados são as palavras de Mateus 25,31-46, e falar dos pobres como sendo “carne de Cristo” tem causado mal estar em ambientes eclesiais e irritado os reacionários. Este pontífice conhece de perto os desastres do capitalismo. Incomoda que ele condene a idolatria do dinheiro. A pobreza afasta da idolatria.
O amor aos pobres é central desde o primeiro instante de seu pontificado quando escolheu o nome de Francisco. Seu amigo Dom Cláudio Hummes lembrou-lhe: “não te esqueças dos pobres”. Dom Paulo Evaristo Arns, outro amigo de Francisco, um lutador contra a ditadura e defensor da justiça social, comemorou 95 anos esta semana. Um de seus lemas “Deus só ajuda a quem se organiza”, serve para os jovens que ocupam as escolas contra a PEC 241, proposta pela cleptocracia que comanda o Brasil. Este governo é uma prova de que esta economia mata (Evangelii Gaudium, 53).
Somos reconduzidos por Francisco à raiz evangélica do amor aos indefesos e injustiçados. “Se sairmos de nós próprios encontraremos os pobres. Não podemos ser cristãos que falam de assuntos espirituais enquanto tomamos chá sossegadinhos. Não! Temos de ser cristãos corajosos e ir ao encontro daqueles que são a carne de Cristo”. Tocar na carne de Cristo é assumir em nós o sofrimento dos descartados. Isso torna o cristão naturalmente subversivo diante daquilo que Pio XI chamou de imperialismo internacional do dinheiro.
A Doutrina Social denuncia a opressão sobre os pobres e a espoliação do trabalhador como dois pecados que clamam a Deus. A Igreja de Cristo é chamada a ser sacramento de justiça e solidariedade para estes milhões. Mas parcela considerável da Igreja necessita de conversão, pois é escandaloso que figuras principescas do alto escalão abençoem a plutocracia que tira dos pobres para dar aos ricos. “O capitalismo desregulado é como Herodes que semeou a morte de inocentes para defender seu próprio bem estar” (Francisco). Se a desigualdade é a raiz de todos os males, sem uma solução para os problemas dos pobres não há solução para os problemas do Brasil: “Como não chamar de ladrão a quem desnuda o pobre? Haverá que dar outro nome a quem não veste o esfarrapado quando pode fazê-lo? Do faminto é o pão que tu reténs; do esfarrapado é o manto que guardas em teus armários, do descalço é o sapato que apodrece em tua casa” (São Basílio, Homilia Contra a avareza).
*Élio Gasda: Doutor em Teologia, professor e pesquisador na FAJE. Autor de: Trabalho e capitalismo global: atualidade da Doutrina social da Igreja (Paulinas, 2001); Cristianismo e economia (Paulinas, 2016).
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