sábado, 24 de dezembro de 2016

Coalhada e peixe frito substituem peru de Natal na ceia de refugiados em SP

Comida típica e caseira aplaca a saudade de Sylvie Ngkang, da República Democrática do Congo, e do sírio Eyad Abuharb. Eles deixaram seus países de origem para sobreviver no Brasil.
Por Lívia Machado e Paula Paiva Paulo, G1 São Paulo
24/12/2016
Sylvie Mutiene é da República Democrática do Congo (Foto: Lívia Machado/G1)
Coalhada e saka madesu substituem peru em ceia de refugiados

Os ingredientes são brasileiros, mas a comida e os cozinheiros, estrangeiros. O Natal de quem se refaz em São Paulo, após deixar seu país de origem para fugir da guerra ou de perseguições políticas, ganha sabores – e cores – de festa típica, que aplacam tanto a fome quanto a saudade.
Na ceia do imigrante Eyad Abuharb, a tradição recomenda comidas brancas. Coalhada acompanha? Obrigatoriamente. É parceira da massa, do quibe e usada, também, nos preparos de outros quitutes.
No caso da advogada Sylvie Mutiene Ngkang o tempero da galinha caipira e do Saka Madesu (peixe frito temperado com noz moscada, acompanhado de feijão, folha de mandioca, regados no azeite de dendê), prato popular na República Democrática do Congo, este ano, será feito por sua mãe, recém-chegada à capital paulista, após três anos longe da filha. "A comida da mãe é sempre diferente, né? Esta vez vamos comer a comida da mãe, mesmo."
Há três anos no Brasil, Sylvie deixou a cidade onde morava após militares comandados pelo presidente Joseph Kabila – que está no poder desde 2001 – invadirem a residência da família em busca de seu marido. “A violência daquela noite ninguém consegue imaginar”, diz a advogada, fechando os olhos para segurar a lágrima.
Opositor ao atual governo, ele chegou a ser preso e torturado por fazer parte do partido de contrário a Kabila. Conseguiu fugir da cadeia, e pedir refúgio ao Brasil.
Após ser brutalmente agredida e ver o filho Winner, à época com dois anos, sendo jogado contra a parede pelos oficiais, Sylvie vendeu o imóvel que tinha, abandonou as demais propriedades e embarcou, de navio, com os dois filhos, Jesse e Winner, na esperança de encontrar o marido. Foram 40 dias de viagem, mais de um mês em silêncio para não serem descobertos.
“Cheguei não sei onde e fui para o Centro de São Paulo. Procurei um local para dormir, estávamos muito cansados. Eu só falava francês. Me deixaram dormir na recepção de um hotel”, recorda.
No dia seguinte, foi encaminhada para a ONG Cáritas, que presta assistência a refugiados no país. Sylvie recorda do primeiro Natal no Brasil. Já instalada em um abrigo na Penha, Zona Leste, foi acordada pelos filhos, assustados com os barulhos ininterruptos de explosões. “Achamos que era tiro, por conta da nossa realidade. Quando fomos ver, era aquela alegria, fogos de artifício. Tão bonito, gostei”, descreve.
Três meses após a primeira ceia longe de casa, ela e o marido se reencontraram. Em meados de fevereiro de 2014, 
Sylvie e a família, que estará mais completa neste Natal com a chegada de sua mãe  (Foto: Lívia Machado/G1)
Sylvie tinha ido à sede da ONG buscar um medicamento para Jesse, que estava doente. 
Na espera, ouviu uma assistente social dizer o nome do esposo. “Chorei por semanas”.
Seguiram morando em abrigos até terem mínimas condições financeiras para alugar um imóvel que comportasse a família. Formada em direito no Congo Democrático, Sylvie trabalhou como auxiliar de cozinha em escolas particulares e municipais da Zona Leste. Deixou o primeiro emprego após o nascimento da caçula, que nasceu em São Paulo e "tem nome de brasileira": Beatriz Gabriela, prestes a completar dois anos.
Há uma semana, foi chamada para assumir a vaga de copeira em um hospital municipal do Tatuapé. O marido, contador e professor universitário, tem se virado apenas com bicos como soldador.
Este ano, graças ao dinheiro arrecadado em uma vaquinha virtual, ela conseguiu angariar dinheiro para trazer a mãe e os irmãos. Os rapazes moram em abrigos, pois não há espaço para todos na casa.
Na noite deste sábado (24), porém, estarão todos reunidos pela primeira vez após três anos separados. “Vai ser mesmo como se fala: 'tipo no Congo'”, comemora.

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