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Se lidas numa ótica fundamentalista, parcialista ou esfacelada, algumas passagens bíblicas podem sugerir certa passividade diante dos acontecimentos e da história.
É preciso cultivar a serenidade da fé que nos anuncia um Deus que não é alheio à nossa vida . (Divulgação)
Por Tânia da Silva Mayer*
Há tempo que as palavras da Bíblia são utilizadas para corroborar o poder que determinados grupos exercem sobre outros. O Brasil escravocrata, que se afirmava cristão, utilizou as sagradas escrituras da fé para justificar a escravidão dos negros e negras. Até a ascensão do feminismo, elas sustentaram a submissão serviçal das mulheres perante aos homens, justificando uma fronteira na qual o feminino está num grau inferior ao masculino. Até hoje, equivocadas interpretações bíblicas sugerem que a homossexualidade e que as pessoas LGBTs são abominados por Deus. Tudo isso e muito mais é afirmado ou sustentado por uma leitura parcialíssima, fundamentalista e esfacelada do texto bíblico. O encontro com a as Sagradas Escrituras, se feito na esteira do Concílio Vaticano II, pode nos ajudar a compreender os sinais de nosso tempo à luz da fé, promovendo a vida e rompendo com velhos preconceitos.
Se lidas numa ótica fundamentalista, parcialista ou esfacelada, algumas passagens bíblicas podem sugerir certa passividade diante dos acontecimentos e da história. Influenciando certa ausência de protagonismo diante da vida. A comunidade dos Tessalonicenses viveu um sentimento parecido com esse. À espera pela vinda do Senhor, alguns cristãos da comunidade se acomodaram na vida e deixaram de pelejar o seu sustento. Como se esperava uma parusia eminente, a ociosidade e o abandono dos trabalhos deslocou a comunidade de sua tarefa de transmitir a mensagem do Evangelho no dia a dia. Por isso, a comunidade é admoestada a viver a vida, trabalhando cada dia por seu próprio sustento, até que o Senhor venha. Nesse sentido, Paulo ensina: “De ninguém recebemos de graça o pão que comemos. Pelo contrário, enfrentamos um trabalho penoso e cansativo, de noite e de dia, para não sermos pesados a nenhum de vós. [...]. Ora, temos ouvido falar que, entre vós, há alguns vivendo desordenadamente, sem fazer nada, mas intrometendo-se em tudo. A essas pessoas ordenamos e exortamos no Senhor Jesus Cristo que trabalhem tranquilamente e, assim, comam o seu próprio pão” (2Ts 3,8.11-12). Assim, a expectativa pela vinda do Senhor não deve ser motivo para uma alienação da história e de seus acontecimentos conflituosos.
Ao lermos o capítulo 6 do Evangelho de Mateus, percebemos uma insistência de Jesus para que seus discípulos e discípulas acorram aos bens do Reino e não aos bens terrenos, “onde as traças e a ferrugem destroem e os ladrões podem arrombar e roubar” (Mt 6,19). Por isso, os cristãos e as cristãs não podem “servir a Deus e ao dinheiro” (Mt 6,24). O dinheiro aqui é entendido como fechamento egoísta em detrimento às necessidades dos irmãos e irmãs. A perícope de Mateus 6,25-34 é bastante conhecida, e fecha a série de exortações de Jesus sobre a referida temática. Essa passagem deve ser compreendida no sentido amplo de um ensinamento a respeito da vida. Por isso, o versículo 25 traz um dito sapiencial: os seguidores de Jesus não devem ficar preocupados e ansiosos por causa da vida, a respeito do que comer e beber, e nem por causa do corpo, a respeito do que vestir. Porque a vida é maior e mais importante que o alimento e o corpo mais importante que a roupa. Depois dessa observação, Jesus sugere que se encontre na natureza entre as criaturas aquelas que são amparadas por Deus em suas necessidades. Dessa forma, percebe-se que aos pássaros do céu, que não semeiam e colhem, é dado o alimento; e aos lírios do campo, que não costuram para si, são vestidos pelo próprio Deus.
Nessa perspectiva, o Evangelista quer despertar a consciência da sua comunidade para a bondade e fidelidade de Deus que não a desampara na história. Por isso é que Jesus se dirige aos seus ouvintes orientando-os a não ficarem ansiosos, preocupados e inquietos com as suas necessidades cotidianas, não é na tentativa de solucioná-las que se deve encerrar os esforços, mas no Reino, que deve ser buscado em primeiro lugar. Com essa afirmação, Jesus ensina a confiar na graça de Deus que nos alcança benevolamente em nossas pelejas e nas dificuldades que enfrentamos diariamente e que é maior que tudo isso que vivemos.
Mas é importante notar que essa passagem bíblica, se lida de maneira fundamentalista, poderia induzir a compreensões e posturas descompromissadas com a história e com as necessidades básicas para que a vida se desenvolva. Isso significa que diante de graves problemas sociais poderia ser sugerido um comodismo ou um desengajamento nas lutas que propõem uma vida melhor para todos. Não é isto que o Evangelho de Mateus sugere. O Reino de Justiça e Paz é dom que Deus oferece à humanidade. Jesus inaugura o Reino transformando a vida das pessoas com as quais se encontra, precisamente, ele anuncia o Reino devolvendo e promovendo a dignidade de cada pessoa, transformando a pessoa toda. E o Reino, que deve ser buscado em primeiro lugar, é uma realidade já presente e ainda não consumada na história. Por isso, durante a vida, os cristãos e as cristãs são chamados a se engajarem nas lutas que proponham e promovam a vida dos sofredores e daqueles cuja dignidade é usurpada. Quando se busca o Reino em primeiro lugar, se demonstra uma fé amadurecida no Deus que tudo provê aos seus filhos e filhas, ao mesmo tempo em que se esforça para que esse Reino seja uma realidade cada vez mais presente na história.
Nesse sentido, os homens e mulheres que se denominam seguidores de Jesus Cristo não podem ficar indiferentes e nem compactuar com o montante das injustiças que temos presenciado em nosso país. Defender a PEC 55 e a sua arbitrariedade em cortar na carne dos pobres, com insuficiente desculpa de redução de gastos do Estado brasileiro, é um escárnio diante do Reino. A enlouquecida proposta da Reforma da Previdência Social é vergonha diante do Evangelho que nos ensina a garantir os direitos dos que mais precisam. Ademais, é um desrespeito para com a terceira idade, mas não só, é condenar uma geração de jovens trabalhadores braçais à morte desassistida pela nação para a qual trabalharam toda a vida. É preciso cultivar a serenidade da fé que nos anuncia um Deus que não é alheio à nossa vida e que providencia tudo quanto precisamos. Mas para que essa serenidade seja a do Reino, devemos nos indignar e denunciar os sistemas e os esquemas que nos furtam a vida e a dignidade. Desse modo, em uma sociedade de justos direitos respeitados vislumbremos a bondade de Deus que veste de lírios o campo, outrora “banhado em morte pra reviver”.
*Tânia da Silva Mayer é Mestra e Bacharela em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje); Cursa Letras na UFMG. É editora de textos da Comissão Arquidiocesana de Publicações, da Arquidiocese de Belo Horizonte. Escreve às sextas-feiras.
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