Seu coração, sua mente e sua alma encontravam-se centrados no projeto de Deus.
Por Alfredo J. Gonçalves*
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Efetivamente, do ponto de vista dos parentes e vizinhos, da opinião pública e dos mass media – como seríamos levados a dizer hoje em dia – Jesus estava fora de si. Em primeiro lugar, porque seu coração, sua mente e sua alma encontravam-se centrados no projeto de Deus. “Não sabiam que eu devo estar na casa de meu Pai?” – diz Ele em outra ocasião (Lc 2,49). Depois passará horas, noites inteiras a sós em oração, no deserto, na montanha ou em lugares isolados, na intimidade com o Pai. Fazia-o com tal frequência e proximidade que passou a referir-se a Deus de forma nova e genuína. Abba – dizia – como um menino que se dirige carinhosa e familiarmente ao pai. Inaugura, assim, uma maneira própria e original de rezar, meditar e contemplar o mistério divino. Nesta oração nova (e somos levados a dizer nua), a simplicidade e a singeleza de uma criança ganham primazia sobre os ritos, sacrifícios e fórmulas de uma tradição religiosa que, por sua rigidez e intolerância, tornava-se cada vez mais obsoleta, fossilizada, a-histórica.
Em segundo lugar, Jesus estava fora de si porque, como na metáfora do “Bom Pastor”, caminhava em busca da “ovelha perdida”: os leprosos e marginalizados, os infelizes e oprimidos, os necessitados e sofredores, os pequenos e últimos. Manifestava uma predileção inequívoca por aqueles que a teocracia da época tendia a marginalizar com a tríplice maldição de pobre, doente e pecador. Trilogia preconceituosa e discriminatória, onde uma palavra chamava e completava a outra, num círculo fechado e vicioso que, no fim da linha, levava à exclusão social. Seus passos pareciam conduzi-lo aos lugares onde a vida se encontrava mais abandonada e ameaçada, como no caso das mulheres prostituídas ou das crianças mantidas à distância. Ou ainda nas passagens emblemáticas das bem-aventuranças, da parábola do bom samaritano e do chamado juízo final (respectivamente, Lc 6,20-26; Lc 10,25-37; Mt 25,31-46).
Fora de si, mas não fora, acima ou alheio à história, e sim para além da história terrena. Encarnando-se, assume a obra histórica dos seres humanos na tentativa de transfigurá-la em Reino de Deus. Nenhuma formação humana esgota os critérios do Reino, mas pode acrescentar-lhe um passo. A pátria definitiva supõe mas ultrapassa os limites da peregrinação terrestre. Não duas histórias, mas uma só trajetória humano-divina. Nesta, o fruto do trabalho se reveste com a graça e a bênção de Deus. Fazendo-se homem, Jesus diviniza a tarefa humana: nascendo como pobre, enriquece-nos; descendo à terra faz-nos subir, abrindo para nós a porta do céu. Fora de si, na medida em que, ao mesmo tempo, mantinha um olhar voltado verticalmente para o alto, nutrindo-se da presença e da graça de Deus; e outro olhar voltado horizontalmente para o chão e para os lados, disseminando a esperança da Boa Nova entre as pessoas sedentas de justiça e paz.
Fora de si a exemplo dos “discípulos” que, após a tragédia da cruz, no episódio do Pentecostes, tornam-se pelo fogo do espírito “missionários” do Evangelho. Aliás, sair de si é o primeiro passo da missionariedade. Sair de si, da centralidade dos próprios desejos e interesses, em busca de Deus e do próximo. Colocar-se a caminho, entregar-se nas mãos de Deus, como instrumento que se dispõe a abrir novas veredas numa história marcada por profundas injustiças, corrupção e desigualdades sociais.
Roma, 21 de janeiro de 2017
*Alfredo J. Gonçalves é Superior dos Missionários de São Carlos.
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