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O equilíbrio como superação da banalização e do controle.
Dotados de desejo, homens e mulheres são chamados a se realizarem nas relações, ao mesmo tempo em que possibilitam a humanização do outro. (Divulgação/ Pixabay)
Por Felipe Magalhães Francisco*
Dentre as muitas contribuições trazidas pela Bíblia, a visão antropológica, sem dúvidas, é uma das mais importantes. Os primeiros capítulos do livro do Gêneses mostram um panorama dessa compreensão antropológica, ligando-a diretamente à compreensão de Deus, como fonte de sentido para todas as grandes questões humanas. Na pauta antropológica desses primeiros capítulos bíblicos, a sexualidade humana desponta com um olhar novo, para o contexto da época, a respeito do lugar que ela ocupa na vida humana.
Nas tradições não bíblicas da proximidade israelita, a sexualidade tinha um caráter sagrado: pertencia ao domínio dos deuses e o exercício da sexualidade humana era uma reprodução daquilo que era vivido por esses deuses. O erótico, inclusive, era elemento cultual nas religiões pagãs, com as quais muitos israelitas por vezes se envolviam, despertando a atenção dos profetas, que tão logo punham-se a condenar a chamada prostituição sagrada. Nesses cultos, sacerdotisas simulavam uma relação sexual com o intuito de excitar os deuses (os Baals, “maridos”), a fim de que eles provessem as mulheres, os animais e a terra com a fecundidade.
A Bíblia, em sua visão antropológica, rompe com essa dimensão sagrada da sexualidade e do erótico. Homem e mulher são criados à imagem e semelhança de Deus, vocacionados a co-criadores, numa relação de comunhão. A maneira como homem e mulher participam da co-criação é por meio de sua sexualidade, que diz respeito a somente eles mesmos, sem quaisquer traços de sacralidade. A sexualidade não é da esfera divina, mas iminentemente humana, caminho pelo qual seres humanos são chamados a se realizarem como pessoas. “Esta sim é osso dos meus ossos e carne da minha carne!”, exclama o primeiro homem, ao deparar-se com a outra de si, a mulher. A sexualidade, então, ganha contornos de afetividade, ligada à dimensão erótica, do desejo e das relações carnais.
Exercitar a sexualidade não é reproduzir os atos sexuais dos deuses, mas, segundo a visão bíblica, descobrir-se como pessoa humana, nas inter-relações de afeto, de reconhecimento do rosto do outro como carente de cuidado, e de participação no jogo erótico, como gesto de entrega de si a um outro alguém, que tem um rosto, um corpo, uma história. Superar a mera genitalidade é um desafio que diz respeito a homens e mulheres de todos os tempos, sobretudo naqueles contextos em que a banalização do prazer erótico se faz prevalecer sobre o afeto e o estreitar de laços. Dotados de desejo, homens e mulheres são chamados a se realizarem nas relações, ao mesmo tempo em que possibilitam a humanização do outro. O prazer, nesse sentido, importa, mas não tem fim em si mesmo.
A sexualidade não deve ser um tabu, um assunto intocável. É preciso assumi-la como parte fundamentalmente integradora do humano, que está para além da genitalidade, não ficando restrita aos prazeres eróticos, mas também não os excluindo. Diante do próprio corpo erótico e do corpo do outro, é preciso que cada homem e mulher ouça o apelo silencioso de pedido de cuidado, manifestado no respeito. O conselho do cancioneiro popular brasileiro é legítimo, nesse contexto de uma compreensão globalizante da sexualidade humana: “façamos, vamos amar!”.
Se, por um lado, a banalização do erótico, como fixação no prazer, é um extremo perigoso, a negação da sexualidade, em seus jogos eróticos e de prazer, apresenta-se, por outro lado, como uma chaga que também impede a realização do sujeito como pessoa. Nesse segundo aspecto, a religião cristã, na própria esteira da tradição judaica, perdeu de vista aquela significação profunda da sexualidade e do erótico, trazida na visão antropológica da Escritura Sagrada. A dessacralização do sexo, feita pela Bíblia, não significa sua demonização, mas, ao contrário, significa colocá-lo em seu lugar de legitimidade, como constituinte do humano.
Por longos séculos, a visão cristã da sexualidade, desde Santo Agostinho, marcadamente influenciado pelas tradições platônica e neoplatônica, considerou o erótico como degradante e pecaminoso, sendo tolerável apenas para meios de procriação. As consequências disso são danosas e, mesmo que a visão cristã tenha se afastado dessa compreensão negativa, a sexualidade e o erótico padecem, ainda hoje, de más compreensões. No catolicismo há quase que uma obsessão com as leis morais, que dizem respeito à sexualidade: elas ocupam um lugar de amplo e exagerado destaque. O protestantismo evangélico não fica atrás, segue na mesma linha.
Curioso perceber que as duas realidades que mais são fontes de prazer para as pessoas, que é a alimentação e a dimensão do erótico, são as mais regradas pelas religiões, em geral. A própria Bíblia, por exemplo, que, como dissemos, contribui sobremaneira com uma compreensão humanizadora da sexualidade, aponta para uma série de leis proibitivas a respeito do exercício sexual e alimentar. Isso revela o lugar de importância que a sexualidade tem para a vida humana e, ao mesmo tempo, mostra o risco de a religião ceder à tentação de querer controlar, autoritariamente, os corpos das pessoas.
No tocante à sexualidade, as religiões têm um papel importante a contribuir para o desenvolvimento humano, na promoção de uma ética do cuidado e do respeito. Não cedendo às tentações de controle, as religiões são importantes no processo de chamada de atenção para os valores que nos constituem pessoas corresponsáveis para o amadurecimento do humano. Se a Bíblia colocou a sexualidade em seu lugar de direito, é preciso que as religiões cristãs não a retirem de lá, num desserviço autoritário de controle. Assumir, na prática pastoral, uma postura libertadora é caminho necessário para que o cristianismo tenha uma palavra honesta e de sentido para os homens e mulheres de nosso tempo.
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*Felipe Magalhães Francisco é teólogo. Articula a Editoria de Religião deste portal. É autor do livro de poemas Imprevisto (Penalux, 2015). E-mail: felipe.mfrancisco.teologia@gmail.com.
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