terça-feira, 5 de setembro de 2017

The Handmaid's Tale e a doença de um país

domtotal.com
A República de Gilead pode estar mais próxima de nós do que gostaríamos.
As aias da série: escravas da fertilidade.
As aias da série: escravas da fertilidade. (Divulgação)
Por Alexis Parrot*

Que país é este onde um juiz acha normal que uma passageira de ônibus receba um jato de sêmen no rosto? Qual é a diferença do doente mental que não consegue segurar o impulso de ejacular em público em cima de uma desconhecida para o pastor deputado Marco Feliciano que, acusado de estupro por uma estudante de jornalismo, conseguiu se livrar da acusação desmoralizando a vítima? Quem é mais doente? O juiz, o tarado, ou o pastor?

Ou doentes estaríamos todos nós - prontos para emitir opiniões levianas sobre qualquer assunto pelas redes sociais mas incapazes de enxergar quem são nossos verdadeiros algozes e quem são as vítimas de fato?

Se nos perguntarmos onde iremos chegar, a resposta pode estar na série The Handmaid's Tale.

Esteticamente, é baseada nos quadros de Vermeer (1632-1675) e seus instantâneos do cotidiano caseiro da Holanda da época, com direito a moças com brinco de pérola e fachos de luz de origem externa bem marcados, iluminando parcialmente todos os ambientes. A força explosiva do barroco - com a profundidade de campo e a técnica do chiaroscuro - é colocada a serviço da fotografia da série, criando um contraponto entre visual e trama.

A beleza tocante que emoldura os acontecimentos mostrados só compete para exacerbar os horrores dos quais nos tornamos testemunhas. É muito raro assistirmos tamanho cuidado estilístico na televisão: a fotografia utilizada como elemento conceitual e narrativo; uma iniciativa de invenção que merece aplausos.

A trama: em um futuro não muito distante, por motivos nunca explicados claramente, o mundo sofre com uma epidemia de infertilidade. Mesmo aquelas raras mulheres capazes de engravidar, dificilmente conseguem levar até o fim a gestação.  

É neste ambiente de desesperança que um grupo religioso fundamentalista cristão, os Filhos de Jacó, assume o poder nos Estados Unidos e funda a república de Gilead - presumivelmente, após um golpe de Estado. Intelectuais e professores são condenados à morte na tentativa de se extinguir qualquer rastro de educação. Agora qualificados como "traidores do gênero", homossexuais também são exterminados. A constituição e o código penal são substituídos pela Bíblia (na verdade, uma leitura ao pé da letra de passagens da Bíblia que possam interessar ao discurso do novo poder vigente) e, sob esta diretriz, as mulheres passam a ser cidadãs de segunda classe.

São divididas em castas que traduzem a sua função na sociedade: as esposas; as martas (cozinheiras e arrumadeiras); as tias (disciplinadoras); jezebéis (prostitutas) e aias (mulheres férteis destinadas a gerarem filhos para os funcionários mais graduados do regime, os comandantes). Cada categoria passa a vestir-se de uma cor específica e com roupas iguais.

Uma vez por mês, durante o período fértil de cada uma, essas aias (as "handmaids" do título em inglês) são obrigadas a participar, com o comandante a que foram designadas e sua respectiva esposa, do que é chamado de "cerimônia"; na prática, um eufemismo para o que revela-se a ritualização de um estupro assistido.

É pelo olhar de uma das aias que penetramos nessa distopia de desumanidade reinante, verdadeira temporada no inferno. Dela, tudo foi tirado: a profissão, o marido, a filha e até o nome - é costume que as aias recebam um novo nome que as ligue ao seu comandante. Assim, a protagonista, June, passa a ser chamada de Offred - "do Fred", em tradução livre. Ver-se alijado do próprio nome talvez seja mesmo o fundo do poço da perda da identidade - uma das mais terríveis ferramentas de dominação utilizadas pelos senhores de Gilead. 

Offred é vivida (e não há melhor termo para honrar a interpretação que nos é oferecida) por Elisabeth Moss, a mesma atriz que já havia nos encantado quando batia ponto na agência de publicidade da icônica Madmen, no papel da ambiciosa e sonhadora Peggy Olson. Moss, que começou a atuar na infância e teve seu primeiro papel de destaque como a filha caçula do presidente Josiah Bartlet (Martin Sheen) em The West Wing, é o que há de melhor entre todas as muitas qualidades da série.

Com tamanha entrega, sua interpretação para Offred é definitiva; a imagem da atriz, a partir de agora, será sempre associada à personagem - como Oscar Werner sempre será Montag, o bombeiro da distopia de Ray Bradbury, encarnado por ele no filme Fahrenheit 451. E as comparações não param por aí. Se as pinturas de Vermeer são a fonte para a fotografia dos interiores da série, os exteriores inspiram-se claramente na Inglaterra bucólica e fria da obra-prima de Truffaut. 

Baseada no best-seller da década de 80, escrito pela canadense Margareth Atwood, apesar de criada e produzida por um homem (o veterano em séries de sci-fi Bruce Miller), essa primeira temporada de The Handmaid's Tale tem os episódios escritos e dirigidos majoritariamente por mulheres: uma escolha digna de reconhecimento e que dialoga coerentemente com o tom político da obra original.

Milicianos fortemente armados substituem exército e polícia; uma rede de espiões é formada (seus membros são chamados de "olhos") para identificar e neutralizar os inimigos do regime.

Placas com nomes de ruas são retiradas porque até a informação mais básica deve ser privilégio de poucos. Se uma mulher é flagrada lendo, perde um dedo; se reincide no "crime", tem uma das mãos decepada.     

Em nome de reformas necessárias e com o respaldo de um discurso religioso, algo parecido aconteceu no Irã, em 79. Algo parecido está em curso na Síria e Iraque, pelas mãos do Estado Islâmico. Podemos nos enganar ao não querer enxergar, mas Gilead pode estar mais próxima de nós do que gostaríamos.

Não é difícil vislumbrar Felicianos, Malafaias, Bolsonaros e animais do tipo assumindo confortavelmente o papel de comandantes, caso a influência dos grupos fundamentalistas que representam continuem a crescer em todas as esferas dos três poderes da nossa tão combalida república.

Em um país adoecido, o discurso do ódio e do preconceito encontra terreno fértil para frutificar como solução para a chegada de um tempo melhor. Sobre este perigo, o comandante interpretado por Joseph Fiennes admite: "O melhor não significa que vai ser bom para todos. Na verdade, o melhor só é bom para alguns".   

Esta é a importância de The Handmaid's Tale: mais que uma distopia futurista, pode ser lida (e agora assistida) como uma alegoria de tudo aquilo que já estamos vivendo ou por viver.

(The Handmaid's Tale - produção do serviço de streaming norte americano Hulu, sem previsão de estreia no Brasil.)

*Alexis Parrot é diretor de TV e jornalista. Escreve sobre televisão às terças-feiras para o DOM TOTAL.

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