terça-feira, 24 de outubro de 2017

A estreia infernal de O Outro Lado do Paraíso

domtotal.com
Na Globo, o Tocantins virou um bang-bang de cinema B americano.
Atores Sérgio Guizé e Bianca Bin em cena romântica da novela
Atores Sérgio Guizé e Bianca Bin em cena romântica da novela "O outro lado do paraíso". (Divulgação)
Por Alexis Parrot*

Com a difícil missão de fazer frente à audiência obtida por A Força do Querer, a Globo estreou ontem - com muito estardalhaço - seu novo folhetim das nove, O Outro Lado do Paraíso.

Após a Globo ter desistido de seguir com a produção de O Sétimo Guardião (a mais que esperada volta de Aguinaldo Silva ao terreno do realismo fantástico), por um imbroglio de direitos autorais, a fila teve que andar.   

Neste contexto, Walcyr Carrasco, vitorioso em suas últimas investidas, parecia ser a melhor escolha para substituir o sucesso de ibope que foi a novela de Gloria Perez. Quem não se lembra da polêmica do "book rosa" da minissérie Verdades Secretas ? Ou do clima caipira estilo Mazzaropi de Eta Mundo Bom?

Mas o que vimos no primeiro capítulo, se nos encheu os olhos com paisagens deslumbrantes e as belezas naturais do parque do Jalapão no Tocantins, deixou muito a desejar no que tange à construção dramatúrgica e à força dos personagens apresentados. Existe um velho ditado em Hollywood: se saímos de um filme elogiando demais a fotografia, é um mau sinal. Geralmente significa que o resto (atores, direção, roteiro...) não impressionou - ou pior, não funcionou mesmo.

Causava constrangimento ver grandes talentos como Fernanda Montenegro, Lima Duarte ou Juca de Oliveira dando falas dignas daquelas peças comemorativas do ensino fundamental que você só acha interessante porque seus filhos ou sobrinhos participam, todo final de ano. O problema é que nem a Fernanda, nem o Lima e muito menos o Juca são seus filhos ou sobrinhos.

A grande dama do nosso teatro é uma velha xamã que ouve vozes, cercada por esculturas que imitam aquelas da Ilha da Páscoa, entulhadas em seu quintal. (A conexão entre a Ilha da Páscoa e o Tocantins, sinceramente, me escapa.) Toda a cenografia da casa da bruxa é tão inadequada e over que mais lembra uma loja de 1,99 em época de natal: coisa demais, luzinhas acesas demais, tudo demais - mas tudo bem baratinho. E, para condizer com o excesso do cenário, já teve até imagem de santa chorando nesse primeiro capítulo.    

O triângulo amoroso central, formado por uma moça humilde e órfã, um médico idealista e um bad boy de camisa aberta quase até o umbigo não poderia ser mais clichê. Sergio Guizé (provavelmente, o ator com a pior dicção que já apareceu na televisão brasileira) porque é o malvado, sorri com a boca torta. Para mostrar ser mais jovem do que de fato é, diz absurdos como: "Às vezes eu entro numas..." Ao ouvir gíria tão desbotada, a pergunta é inevitável: em que ano se passa a novela?

Em momento love total, a professorinha vivida por Bianca Bin pergunta para Guizé se ele gosta de crianças. Ele conta que sempre sonhou em ser pai. Os olhos dela brilham, o coração bate mais rápido e, sem se conter de alegria, ela responde: "Meu maior sonho é ser mãe!" E voilà! Com este textinho mequetrefe, o autor quis estabelecer que duas almas gêmeas se encontraram.

Há também algumas lições que Carrasco aprendeu com colegas autores de novelas das nove e coloca em prática neste novo projeto.

Como nas novelas de Manoel Carlos (onde todo mundo se encontrava casualmente nas esquinas do Rio), no parque estadual mais famoso de Tocantins (apesar de seus mais de mil e quinhentos quilômetros quadrados de extensão) conhecidos também acabam se esbarrando sem querer... E assim, o Jalapão virou Leblon!

De Gloria Perez, a nova novela importa as tramas de responsabilidade social. Falará de racismo; de quilombos e quilombolas; de homofobia; e de uma anã rejeitada pela mãe. Apesar desta personagem ainda não ter dado as caras, nas chamadas que propagandearam a estreia, ficou claro que o tom da discussão será literal e forçado. Em uma das cenas por vir, veremos Estela dizer em um desabafo para a empregada: "Eu sei que sou anã, mas o que é 'normal'? E se todo mundo fosse anão? Pessoas como minha mãe seriam o quê? Gigantes? Exceções?" Dá mesmo vontade de "entrar numas"...

A inclusão do tema delicado parece também vontade de ecoar o sucesso arrebatador de Tyrion Lannister, o genial anão de Game of Thrones que encontrou a encarnação mais que perfeita no ator Peter Dinklage. Mas a atriz Juliana Caldas, intérprete da Estela, terá muito mais dificuldades para acertar a mão em sua atuação. Afinal, ao contrário do aliado da mãe dos dragões, tudo leva a crer que o texto à sua disposição seguirá o caminho do sentimentalismo barato - como tudo nessa novela.

Além das sérias questões no campo da dramaturgia, O Outro Lado do Paraíso traz também um problema grave de representação. Apesar de ser bem-vinda a visibilidade que ganhará o estado do Tocantins e do Parque do Jalapão e assim como é salutar o vislumbre de outros cenários fora do eixo Rio-São Paulo em nossa televisão, a Globo repete um pecado em que já se tornou especialista: nos mostra um Tocantins distante do Tocantins real. Acerta no visual mas mente no conteúdo.

O Tocantins da Globo foi teletransportado para dentro de uma fita de bang-bang de cinema B americano. Está mais perto do Arizona do que de Palmas. E mesmo dentro do Brasil, está mais próximo de Goiás e Mato Grosso do que do Pará e Maranhão. Por isso ouviremos na trilha da novela muito folk e rock sulista norte americano, muito sertanejo e alguma música caipira, bem como canções em castelhano. As raízes nordestinas da música local foram deixadas completamente de lado.

Por preguiça ou ideologia, o que o estado chama, com muito orgulho, de tocantinidade foi o que menos interessou à Globo - que decidiu inventar uma outra coisa para nos apresentar como o Tocantins. Para a percepção rasa de mundo que a emissora quer nos vender, a riqueza cultural do estado limita-se apenas ao artesanato com capim dourado.

No saldo final do que podemos esperar da novela, talvez apenas a Sophia de Marieta Severo surja como ponto positivo. Na boca de uma vilã, o texto duro e absurdo cai como uma luva e Marieta está sabendo aproveitar cada sílaba que declama. É a mãe que renega a filha anã e casa o filho com a moça que despreza para poder botar as mãos nas terras herdadas por ela. Será capaz de tudo para se apoderar de um suposto veio de esmeraldas no subsolo da propriedade da nora. Parece irmã gêmea da senadora Katia Abreu: fazendeira rica, defensora das demandas dos ricos ruralistas e latifundiários e até do trabalho escravo.

Por enquanto, parece ser mesmo Marieta Severo o único alento para quem se dispuser a assistir a esse mal enjambrado Faroeste Caboclo.

*Alexis Parrot é diretor de TV e jornalista. Escreve sobre televisão às terças-feiras para o DOM TOTAL.

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