sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

A arte de fotografar

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Alguém pode fotografar o amor, o medo, a coragem, a alegria?
Fotografa-se para contar a história, um ponto de vista, traduzir um sentimento.
Fotografa-se para contar a história, um ponto de vista, traduzir um sentimento. (Divulgação/ CCBB)
Por Gilmar Pereira

Para que se fotografa? Dentre as razões possíveis, para fazer memória. E o que é isso se não o esforço de não deixar que algo passe, ou melhor, de fazer com que o passado ressuscite no presente? Na imagem rememorada o passado não morre, não passa, e a fotografia serve como sua invocação e narrativa.

Se etimologicamente fotografia é “escrita com a luz”, toda foto é um texto que se registra com imagem, sendo tecida com as luzes fugazes que faíscam quando o passado encontra-se com o presente. Porque a imagem não é mero registro do que foi, mas um olhar sobre a realidade. Abrir um álbum de casamento e ali ver a figura do vestido pendurado no chamado “dia da noiva” é reviver a ansiedade pela cerimônia, o sacrifício anterior para caber nele, a emoção de arrastá-lo pelo corredor da igreja, experimentar novamente o que tudo aquilo significou e no que repercutiu. É encontrar com tudo o que aquilo causou como a lua de mel, a casa nova, os filhos. Na fotografia do vestido está o namoro, o casamento, o amor dos noivos. O vestido fotografado não é só um vestido.

Fotografa-se para contar a história, um ponto de vista, traduzir um sentimento. Fotografar de baixo para cima, deixa o motivo da foto maior, imponente. Deixá-lo no canto da foto ao lado de algo grande que ocupa o maior plano pode fazer parecer o fotografado menor. O jogo de luzes, com forte contraste entre escuro e claro, dão à cena um ar dramático. A cada “click” um novo olhar, contando não só o que se vê, mas também o intangível e o invisível. Uma boa foto registra o que não se pode olhar. Alguém pode fotografar o amor, o medo, a coragem, a alegria? Não. O fotógrafo não pode fazer isso. Contudo, na disposição dos elementos, no ângulo escolhido, na luz utilizada, ele pode provocar a memória. E quando os olhos se deparam com a imagem fotografada, o passado resplandece na memória despertando os sentimentos vividos e as esperanças do que virá, pois o passado sempre lança luz para o presente, projetando-nos para o futuro. E mesmo numa foto artística, a imaginação lê toda essa escrita e desperta sentimentos novos, estabelece inúmeras associações. No encontro entre imagem e imaginação, surge mais do que registra a ciência ótica ou a simples mecânica do olhar.

“Nossa! Que foto linda! Ah! Mas também, com essa câmera...” – é o que todo fotógrafo escuta. Entretanto, a foto não é arte da câmera, mas da sensibilidade de quem a manipula, do seu olhar para a realidade, da cultura que possui e lhe capacita para escrever imageticamente a vida. Por isso, não se iludam com os diplomas de fotografia nem com os nomes em inglês nas contas do Instagram. O que faz um fotógrafo não são certificados ou a autodenominação como “photographer”, mas sua sensibilidade e olhar. Há quem já o seja, mesmo sem titulação alguma. A técnica aprendida lhes serve como ferramenta para a melhor fotografia. Outros, porém, aprendem a técnica, mas só se tornam fotógrafos depois de muitos anos, quando param de buscar motivos fora e encontram as imagens dentro de si.

Desse modo, torna-se fotógrafo de bebês e new born quem tem um olhar de criança ou que abriga em si algo de materno ou paterno. Só se torna fotojornalista quem tem um olhar que sabe garimpar o cotidiano. Registra eventos quem guarda em si a alegria das festas e a experiência dos encontros. Fotografa moda e designe quem é fashion ou se encanta com as linhas, cores, curvas e anseia pelo atual. Fotografa-se como se vive, fazendo com que o primeiro fotografado seja sempre quem está atrás da câmera. Este está em cada uma de suas fotos ainda que não seja visto.

Velocidade do obturador, sensibilidade na escala ISO e abertura do diafragma formam a tríade básica para qualquer um que se arrisca em fotografar. Entretanto, a boa imagem depende da velocidade da atenção que se dá ao mundo. Às vezes rápida, para captar o que é fugaz; às vezes lenta, para degustar e aprofundar o vivido. Depende da sensibilidade do coração, seja mais duro para aguentar as cenas tristes, seja mais frágil para se emocionar com os outros.  Depende da abertura que se dá ao mundo, seja grande para lhe acolher, seja pequena para resistir ao que é mau. É na câmara do coração que se revela a verdadeira fotografia.

Ex Africa

Não se retrata a realidade apenas com uma máquina. Há diversas formas de se lhe representar. Além da fotografia, há outras artes que podem nos ajudar a abrir os olhos e a contemplar o real e aquilo que não conseguimos ou queremos ver. Em tempos que se discute muito sobre o racismo, ela pode contribuir para que encontremos nossas origens como nação e a dar voz ao que foi calado na história.

Em cartaz no CCBB, Ex Africa é a mais importante exposição de arte africana contemporânea realizada no Brasil. Seu nome é inspirado na frase de Caio Plínio Segundo (23 d.c.-79 d.c.): "Ex Africa semper aliquid novi [da África sempre há novidades a reportar]". A mostra apresenta dezoito artistas da geração jovem e intermediária, vindos de oito países africanos que despertam grande atenção internacional, pouco conhecidos no Brasil. A eles se juntam dois artistas afro-brasileiros, Arjan Martins e Dalton Paula, que montaram uma exposição no Brazilian Quarter de Lagos (Nigéria), bairro construído por negros escravizados retornados à África.

Maiores informações, no site do CCBB.

Gilmar Pereira
Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, graduado em Filosofia pelo CES-JF e em Teologia pela FAJE. Apaixonado por arte, cultura, filosofia, religião, psicologia, comunicação, ciências sociais... enfim, um "cara de humanas". Escreve às sextas-feiras.

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