quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

Ideologia: o que nos une é mais forte do que aquilo que nos separa

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Ideologia seria uma teoria que olha erroneamente as ideias como autônomas e eficazes, mas não consegue compreender a realidade.
As ideias de um período são formuladas e mantidas por aqueles que dominam e procuram manter a situação como está.
As ideias de um período são formuladas e mantidas por aqueles que dominam e procuram manter a situação como está. (Photo by Christine Roy on Unsplash)
Por Élio Gasda*

De toda a riqueza gerada no mundo em 2017, absolutamente nada ficou com os 50% mais pobres. Segundo o relatório Recompensem o trabalho, não a riqueza, elaborado pela Oxfam, em 2017 surgiu, a cada dois dias, um novo bilionário. Riqueza que poderia acabar com a pobreza extrema mais de sete vezes. As três pessoas mais ricas dos Estados Unidos detêm um patrimônio equivalente ao que possui a metade mais pobre sua da população (160 milhões de pessoas). No Brasil seis homens concentram a mesma riqueza que os 100 milhões mais pobres. As mulheres terão salário igual aos homens só em 2047 e os negros igual ao dos brancos em 2089. Para piorar, o país fechou 328 mil postos de emprego em dezembro.

Como uma situação tão injusta pode se sustentar por tanto tempo? O sistema econômico compõe-se de corpo e alma. O corpo está constituído pela organização econômica; a alma, pelo espírito que o vivifica, de uma ideologia que o legitime. Disso depende sua continuidade. “Quando uma ideologia fica bem velhinha, vem morar no Brasil” (Millôr Fernandes). Qual é a ideologia que pode legitimar um governo ilegítimo? Estaria o poder judiciário ideologizado? Quantas ideologias você conhece? Quem são os ideólogos da direita e da esquerda?

Ideologia. Que é isso? Seu primeiro aparecimento se deu no século XVIII, por ocasião de uma obra do francês Destutt de Tracy, Eléments d’Idéologie. O filósofo queria propor uma ciência que estudasse a gênese das ideias. Para Karl Marx, a produção das ideias, das representações e da consciência está intimamente ligada ao sistema econômico. Ideologia seria uma teoria que olha erroneamente as ideias como autônomas e eficazes, mas não consegue compreender a realidade. São ideias condicionadas e produzidas pelas circunstâncias sociais. Toda ideologia depende das condições econômicas e das relações de classe. Ela representa os interesses da classe dominante. As ideias de um período são formuladas e mantidas por aqueles que dominam e procuram manter a situação como está.

Fenômenos ideológicos são fenômenos simbólicos na medida em que são usados para conservar relações de poder (Durkheim). A desigualdade pode se manifestar na relação entre os gêneros, grupos étnicos, entre os indivíduos e o estado, entre os países e blocos econômicos. As formas simbólicas da ideologia (atitudes, linguagem, comportamento) são difundidas pela mídia hegemônica e pelas redes. Ela legitima a relação de desigualdade como justa e necessária, dissimula as relações de dominação, fragmenta e segmenta os grupos que possam ameaçar a dominação. Por fim, toda ideologia busca a perpetuação da situação. Legitimação, dissimulação, unificação, fragmentação e perpetuação podem ser encontradas em todas as ideologias.

A Igreja busca manter sua liberdade diante das ideologias. O discernimento do cristão no envolvimento com movimentos sociais nascidos das ideologias pode evitar a instrumentalização da fé. O Documento de Puebla (n.535-559) define ideologia como toda concepção que oferece uma visão da vida e das aspirações de um grupo social. Ela é legítima se os interesses forem éticos. Ideologias surgem como algo necessário para a sociedade, enquanto são mediações para a ação. Em sentido negativo, elas trazem a tendência da absolutizar as aspirações que defendem e as estratégias que adotam. Muitos vivem dentro dos limites de uma ideologia sem tomar consciência disso.

Paulo VI, na Carta apostólica Octogesima adveniens (1971), insiste na necessidade do compromisso político sem se deixar manipular. A Igreja tem um duplo papel: iluminar os espíritos para ajudá-los a discernir entre as diversas doutrinas; difundir a mensagem do Evangelho. Se o cristão quer viver a política concebida como serviço, não pode aderir a ideologias que se oponham radicalmente à sua fé: nem à ideologia marxista do materialismo ateu, nem à ideologia liberal. Toda ideologia é ambígua e pode levar à alienação (n.26-27). Paulo VI também orienta a distinguir entre ideologias e movimentos históricos. A doutrina, uma vez formulada, não muda; ao passo que os movimentos, sujeitos às condições mutáveis da vida, sofrem o influxo dessa evolução. Na medida em que os movimentos estão em conformidade com a reta razão e interpretam as justas aspirações sociais, quem negará que neles haja elementos dignos de aprovação? (n.30).

 Diante de tantas questões novas, a Igreja faz um esforço de reflexão para dar uma resposta ética. Nas diferentes situações vividas por cada um, é necessário reconhecer uma variedade legítima possível de opções político-ideológicas. Uma mesma fé pode levar a assumir compromissos diferentes. Porém, em meio à pluralidade, é preciso manter a convergência: “Aquilo que une os cristãos é mais forte do que aquilo que os separa” (Gaudium et spes, 43). Como ensina a tradição agostiniana: “no essencial, a unidade; na dúvida, a liberdade; em tudo, a caridade”. O cristão busca na sua fé os princípios e os critérios para não deixar-se aprisionar num sistema cujas limitações ele só verá quando for demasiado tarde. E a fé não é uma ideologia.

*Élio Gasda é doutor em Teologia, professor e pesquisador na FAJE. Autor de: Trabalho e capitalismo global: atualidade da Doutrina social da Igreja (Paulinas, 2001); Cristianismo e economia (Paulinas, 2016).

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