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Deus é o Deus crucificado que foi traído, torturado, que desceu aos infernos e morreu humilhado.
A cruz de Cristo está presente em cada uma das cruzes suportadas diariamente pelos rejeitados e aflitos.
(Reprodução/ Pixabay)
Por Élio Gasda*
São tantas cruzes! Da intolerância, da cultura da violência, da discriminação, do descaso, da mentira... mentalidades distorcidas contaminando a sociedade e a Igreja. Semeiam cadáveres, desconhecem limites, não têm escrúpulos. Não conseguem ver no outro um ser humano. Desumanizar é eliminar restrições à crueldade. “O medo endurece o coração e transforma-se em crueldade cega que se recusa a ver o sangue, a dor, o rosto do outro” (Papa Francisco).
Deus não é um mero expectador das nossas angústias. O cristianismo surgiu do mistério de um Deus encarnado, traído, torturado e crucificado. Ele desce aos infernos! Infernos humanos criados pelos demônios da economia, da política, dos senhores do dinheiro e dos podres poderes. Jesus também viveu em tempos de violência. Ele não se enquadrava na ordem estabelecida pelos poderosos. “Achamos este homem fazendo subversão entre nosso povo” (Lc 23,2). A morte de Jesus deveria servir de exemplo.
Deus conhece o sofrimento e sofre nos abandonados à própria sorte. O crucifixo que ornamenta camisetas e peitos, salões e prédios públicos, praças e igrejas está longe da dureza original estampada no calvário. Muito distante do seu verdadeiro significado. Na cruz está um homem pregado, um Deus abandonado e uma mensagem rejeitada. O escurecer daquela sexta-feira que chamamos de santa, no instante em que o túmulo se fecha, abriu um período de silêncio na criação. Silêncio que fez o universo mergulhar no mais profundo e insondável desconhecimento. A Palavra estava morta, o grão de trigo também. A razão humana é impedida de decifrar tamanho mistério. Se ninguém pode ver o Pai sem o Filho (Jo 1, 18) e se o Pai não pode se manifestar a ninguém sem o Filho (Mt 11,27), então, quando o Filho morresse, ninguém veria a Deus. E houve esse dia, em que o Filho esteve morto e Deus se tornou inacessível. Desceu ao extremo da desumanização: inferno.
Um Deus incapaz de sofrer é mais pobre do que qualquer ser humano. Quem é incapaz de sofrer também é incapaz de amar. É impossível amar sem participar do sofrimento. Deus revela seu poder na impotência. Por detrás de toda dor humana, está o sofrimento de Cristo. No momento de calvário Deus mostra a sua presença à criatura atormentada. O coração de Deus está voltado para os descartados. Deus é o Deus crucificado que foi traído, torturado, que desceu aos infernos e morreu humilhado. Não é um rosto desconhecido que o homem clama no auge do seu desespero. É um Deus que grita com ele. Seu rosto está estampado no rosto que agoniza em seu abandono. Sua cruz está presente em cada uma das cruzes suportadas diariamente pelos rejeitados e aflitos.
Todos os dramas e tragédias humanas giram em torno da cruz de Cristo. Nela está a pergunta pela justiça, não a de Deus, mas a da sociedade. A pergunta pela “moral e os bons costumes” dos que se creem do bem, dos “humanos direitos” que sentem melhores que os outros. A cruz é o símbolo maior do protesto de Deus contra estruturas sociais baseadas na violência. Diante das atrocidades cometidas na Síria, do extermínio de povos indígenas, da violência militar nas favelas, do desespero dos refugiados, da barbárie vivida nas prisões, do trabalho escravo, da fome de milhares, das mulheres violentadas, é hipocrisia e cinismo perguntar pelo silêncio de Deus. A cruz é o grito de Deus que acusa os responsáveis por reproduzir gólgotas, calvários e vias-sacras.
Quando um cristão relativiza o sofrimento do irmão, já deixou de ser cristão. Está corrompido, alguém não muito distante de se tornar perverso. Chegou ao fundo poço como ser humano. Cristão não é aquele que se coloca aos pés da cruz e de lá olha para Deus com expressões de contrição. O cristão autêntico coloca seu olhar junto ao olhar de Jesus que, na cruz, contempla a via sacra dos humilhados e condenados aos infernos pelos poderes deste mundo. Vê, na dignidade que foi tirada de Jesus, a dignidade roubada de tantos homens e mulheres. No silêncio dos abandonados percebe o silêncio de Deus na Sexta-feira santa.
Por mais emblemática que seja a cruz como prova de amor, é a sua forma mais completa de Revelação. A chacota dos fariseus, “a outros ele salvou. Mas a si mesmo não pode salvar” (Mc 15,31) aponta uma verdade: Jesus não se salva porque quer salvar a todos. Deus não quer o sofrimento. Jesus morreu crucificado para que ninguém mais fosse crucificado.
Jesus foi vitimado pelo ódio. Mas não odiou seus agressores. Ódio se combate com amor. Só o amor é humano. À medida que vivemos a Páscoa nos tornamos mais humanos, mais misericordiosos. Que a celebração da Páscoa reforce o compromisso do cristão a favor da justiça, da reconciliação e da paz.
*Élio Gasda é doutor em Teologia, professor e pesquisador na FAJE. Autor de: Trabalho e capitalismo global: atualidade da Doutrina social da Igreja (Paulinas, 2001); Cristianismo e economia (Paulinas, 2016).
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