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Desde a inauguração da TV no Brasil tivemos que esperar 45 anos para vermos uma família negra no horário nobre que não fosse de escravos ou empregados domésticos.
Pantera Negra, o herói com que jovens negros podem se identificar. (Reprodução)
Por Alexis Parrot*
Na cerimônia de entrega do Oscar, no último domingo, o apresentador Jimmy Kimmel ironizou, a certa altura: "Eu me lembro de um tempo em que os chefes dos estúdios não acreditavam que uma mulher ou um representante de minorias pudessem ser protagonistas de um filme de super heróis. E eu me lembro bem desse tempo porque foi em março do ano passado."
Ele estava se referindo à Mulher Maravilha e Pantera Negra, bons filmes de ação que conseguiram fazer jus aos personagens dos quadrinhos e também atrair milhões de pessoas aos cinemas no mundo inteiro.
O chiste de Kimmel não poderia ter ido mais na jugular dos poderosos de Hollywood porque, finalmente, vários paradigmas sexistas, racistas e preconceituosos estão sendo derrubados, em efeito dominó, na indústria do entretenimento norte americana. E, sim, de muito pouco tempo para cá.
A mudança é fruto de uma revolução mais política que estética - talvez seja essa a grande diferença entre a revolução por que passa hoje o cinemão da terra de Tio Sam e a que houve nos anos 70, encabeçada por jovens diretores que chamaram para si a responsabilidade total pela autoria de seus filmes.
Os rebeldes deste passado nem tão distante são grandes nomes que se firmaram e seguem em atividade até hoje, como Scorsese, Spielberg, Lucas e Coppola. Estetizaram a violência, mudaram a maneira como a indústria encarava a figura do diretor e deixaram fluir a aventura e a fantasia. Mas as pautas privilegiadas em seus filmes ainda eram centradas na visão de homens brancos e heterossexuais que são.
A militância obrigou a tradicionalista Academia de Cinema dos EUA a dedicar o Oscar do ano passado a filmes, questões e profissionais negros. Este ano, foram as mulheres que ganharam o proscênio, principalmente após a enxurrada de denúncias de assédio sexual, puxadas a princípio contra o comportamento de décadas do poderoso produtor Harvey Weinstein, e que parece não ter um fim à vista - a cada dia somos testemunhas de novos relatos indefensáveis de outras figuras, até então, acima de qualquer suspeita.
O grande sucesso do Pantera Negra, com a bem urdida história da luta para manter o trono de Wakanda, quebra todos os estereótipos que estamos acostumados a ver sobre o negro e a África. Mais importante ainda é a possibilidade de uma nova simbologia, onde jovens negros e negras finalmente conhecem um super herói com quem de fato podem se identificar - em um universo até então coalhado de deuses nórdicos, homens valentes e mulheres coadjuvantes.
Um caminho por onde a televisão brasileira ainda tateia timidamente.
A palidez vergonhosa de nossa TV
Do blackface de Sergio Cardoso em A Cabana do Pai Tomás, em 1970, até o protagonismo de Lázaro Ramos e Taís Araújo em Mister Brau, foi uma longa caminhada. E nada pode garantir que a mudança tenha vindo para ficar, com espaço para outras iniciativas similares.
Taís Araújo, aliás, deve mesmo se sentir orgulhosa por ter sido a primeira protagonista negra de uma novela no país não uma, mas duas vezes. O fato foi alardeado pela Globo na ocasião da estreia de Da Cor do Pecado, novela das sete de 2004. A emissora só se esqueceu, fortuitamente, de que a própria Taís já havia estabelecido o marco oito anos antes, ao encarnar Xica da Silva na TV Manchete.
Da inauguração da TV no Brasil, em 1950, ainda tivemos que esperar 45 anos para vermos uma família negra no horário nobre que não fosse composta de escravos ou empregados domésticos. Em A Próxima Vítima, Zezé Motta e Antonio Pitanga viveram um casal de classe média que participava ativamente da trama principal da novela; não estavam ali apenas para levantar um debate sobre racismo - como costuma ser a praxe nesses casos.
Foi um avanço, mas encerrado em si mesmo. Nem mesmo Silvio de Abreu voltou a escalar atores negros com o mesmo afã em seus folhetins subsequentes.
Taís Araújo voltou a ser personagem principal na malsucedida Viver a Vida, onde defendeu o papel de mais uma Helena de Manoel Carlos (fazendo par romântico sem verdade nenhuma com um enfadado Zé Mayer).
Se nos EUA o capitão Kirk de Star Trek já beijava a Tenente Uhura em 68, no episódio antológico "Os Herdeiros de Platão"; aqui no Brasil, sempre com atraso, o enfrentamento do preconceito contra casais interraciais só foi acontecer em Corpo a Corpo, de Gilberto Braga, em 85. Ao contrário da falta de química dos protagonistas da última novela de Manoel Carlos, Marcos Paulo e Zezé Motta viveram um romance de soltar faíscas.
Assusta a eterna escalação de Zezé Motta e Taís Araújo em nossas novelas. Será que não há mais atrizes negras que mereçam estar na linha de frente dos elencos da televisão? Ou não há interesse em se buscar, descobrir ou redescobrir essas atrizes? É desconcertante ver Isabel Fillardis relegada a uma participação no programa de dança de salão da Xuxa ou Via Negromonte completamente sumida.
No universo das novelas da Globo, apenas Gloria Perez e Aguinaldo Silva parecem se importar com uma escalação mais constante de atores e atrizes negros para suas histórias. Na Record, com suas fantasias bíblicas, a referência é o cinema norte americano. Com princesas egípcias e faraós brancos como a neve, conseguem tripudiar até do bom senso - coisa de quem desconhece ou prefere ignorar como é de fato a cara e a cor do povo do Egito.
Mas se nos lembrarmos que até para Gabriela fizeram um blackface em Sonia Braga, este espaço em branco, verdadeira lacuna nas produções de nossa televisão, não seria caso para tamanho espanto - antes, de indignação.
Talvez o humor seja o único lugar na TV onde o negro sempre brilhou - ou, pelo menos, onde lhe foi permitido brilhar sem ressalvas. Tião Macalé, Paulo Silvino, Eliezer Motta, Marina Miranda, Roberto Guilherme, Jorge Lafond, Luís Miranda, Canarinho, Grande Otelo - este, perfeito em qualquer registro... A lista é extensa e de pura excelência, mas sempre restaria incompleta sem a lembrança do carisma do trapalhão Mussum.
O malandro carioca do Morro da Mangueira, personagem e retrato autobiográfico, uma vítima da profunda injustiça social brasileira que nunca se vitimizou, Antonio Carlos Bernardes ganhou nossos corações cantando e fazendo rir. Mesmo com um tipo de humor que o politicamente correto dos nossos dias possa repreender, Mussum nunca foi um Pai Tomás. Ser negro para ele sempre foi a sua comissão de frente, sem nunca abandonar as raízes ou a cultura que o formaram.
É certo que Mussum não é T'Challa, mas são da mesma tribo. Os dois se encontram no orgulho da negritude e na luta contra o preconceito, cada um à sua maneira. O príncipe africano com os superpoderes que herdou com a linhagem nobre; Mussa, com jogo de cintura e do jeito que pôde, mesmo com tudo contra - quer metáfora melhor para o povo brasileiro?
E há outra vitória, ainda não contabilizada, no sucesso do filme do Pantera Negra. Não são apenas as crianças e jovens negros que se identificam com os valores e o caráter do personagem. Longe de ser uma apropriação cultural indevida, meninos e meninas de todas as raças e cores estão fascinados com a força que este herói projeta. É marketing mas é também um exercício real de identidade.
A beleza de Wakanda está na capacidade de assumir sua alma negra e oferecer, ao mesmo tempo, um lugar onde nós todos podemos caber. A TV brasileira tem muito o que aprender com Wakanda.
*Alexis Parrot é diretor de TV e jornalista. Escreve sobre televisão às terças-feiras para o DOM TOTAL.
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