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A evangelização não pode prescindir do diálogo sobre as histórias de vida daqueles que estão sendo iniciados
A iniciação dos novos cristãos e cristãs merece ser pensada à luz do caminho de Emaús. (Free Bibles Images)
Por Tânia da Silva Mayer*
Quem não se recorda dos dois discípulos que depois de todos os acontecimentos envolvendo a paixão e morte de Jesus retornam de Jerusalém para Emaús, desesperançados pela tragédia que haviam presenciado? Pois bem, a narrativa lucana é bastante conhecida nossa, tanto conhecida que alguns detalhes podem passar despercebidos numa leitura e/ou homilia dominicais. Com licença poética e teológica, vamos pensar o processo de iniciação cristã a partir da abertura dos olhos desses dois discípulos, momento em que reconhecem o Mestre de suas vidas, mesmo já não o vendo mais.
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Os discípulos caminham de volta para casa, e eles vão conversando entre eles. Como podemos intuir, deveriam estar falando sobre Jesus, sobre suas ações e palavras e sobre como o haviam conhecido e começado a segui-lo. Também deveriam ter conversado sobre a dor e a tristeza que estavam sentindo e como elas pareciam não ter mais fim. O mundo havia desmoronado na cabeça deles. Acabou a alegria. Precisamente, o que eles fazem é uma recordação da vida. Olham para a história deles, para a de Jesus, para a das autoridades religiosas e do povo. Ruminam a própria vida, mas ainda não são capazes de lançar luzes sobre a noite escura que atravessam.
Um desconhecido se aproxima e se intromete na conversa, diríamos nós hoje, como quando alguém nos interrompe e puxa assunto enquanto conversamos com outra pessoa. E o que esse desconhecido faz é o que abre a possibilidade que transformará o pranto em sorriso, as sombras em luzes e a dor em festa. "O que vocês vão conversando?" é a pergunta que abre a possibilidade para uma conversa que tende a se aprofundar mais e mais.
Jerusalém é capital, o que lá acontece é notícia por toda a parte, mas há um forasteiro que parece não saber o que por lá se passa. Será que não sabia mesmo? O fato é que sua intromissão dá brecha para que os discípulos elucidem para quem os interroga e para si mesmos todos os fatos que impactaram a vida deles. Psicologia das palavras: é fundamental narrar a própria história para a superação de nossos traumas. Mas Jesus, que sabemos ser o peregrino, não é um psicólogo. Ele é o próximo que escuta atenciosamente a história da vida daqueles dois. Seus ouvidos buscam compreender os problemas e dificuldades apresentadas. O Mestre agora assume o lugar de ouvinte e não é difícil compreender que sente compaixão.
Precisamente, Jesus agora está mais certo sobre o que falta aos seus discípulos, que vagam sem inteligência para ler os sinais do presente. Por isso pode começar a anunciar-lhes tudo o que é dito a respeito dele na Lei, nos Profetas e nos Salmos. Pode percorrer as Escrituras da fé e ensinar-lhes a razão de suas esperanças. Jesus é o Catequista, o Mistagogo por excelência, que está facilitando a penetração dos dois de Emaús no Mistério da Salvação levado a termo na Cruz. Somente após ouvi-los desinteressada e atenciosamente é que dirigiu-lhes sua palavra, mostrando-nos como é importante superarmos os apressados monólogos religiosos em vistas de fomentar diálogos de Aliança entre Deus e a humanidade.
Nesse sentido, compreende-se que a evangelização não pode prescindir do diálogo sobre as histórias de vida daqueles que estão sendo iniciados. A Igreja que sai de suas estruturas mórbidas para encontrar-se com as pessoas pelos caminhos desse mundo sabe que não está a arrebanhar multidões, mas a fazer os novos discípulos e discípulas de Jesus, testemunhas do amor que salva.
Sabemos que o coração dos discípulos de Emaús arderam enquanto o peregrino lhes dirigia sua palavra. Mas isso só se tornou possível porque eles puderam confessar suas dores e tristezas a um desconhecido que se revelou muito mais que um amigo. Podemos dizer que o confronto entre a história de vida dos discípulos contada por eles e a história da salvação narrada por Jesus é que abriu o desejo para continuarem na presença daquele que lhes devolveu a esperança: "Fica conosco... E ele ficou com eles". Tudo agora é festa. Banquete. Celebração.
Olhos abertos, é preciso, pois, dar testemunho da experiência vivida. Jerusalém, que foi palco do assassinato do Nazareno, lugar de choro e de luto, é terreno no qual os discípulos proclamarão a vitória da vida sobre a morte. Quem ardeu o coração de alegria não é capaz de guardá-la só para si. Ela é dom a ser partilhado e tarefa a ser cumprida.
A iniciação dos novos cristãos e cristãs merece ser pensada à luz do caminho de Emaús: palavra-celebração-testemunho, no qual a palavra não se resume a verborragia de fórmulas fixas e ultrapassadas, mas constitui um projeto de humanização no qual a Palavra de Deus comunica sua força performativa na vida narrada dos que aceitam a companhia para o caminho. Por sua vez, acorrem à festa todos os que desejam estreitar os laços e conviver intimamente com o Mestre e com os outros seguidores e seguidoras, revelando que a vida é celebração, apesar da dor. Por fim, quem se deixou ver pelo Senhor e quem fez experiência do seu amor que é mais forte que a morte só pode querer que também outros encontrem novamente as razões que fundamentam a esperança e dão novo sentido à vida.
*Tânia da Silva Mayer é mestra e bacharela em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE); graduanda em Letras pela UFMG. Escreve às terças-feiras. E-mail: taniamayer.palavra@gmail.com.
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