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Por séculos, as resistências e as interpretações equivocadas sobre Martin Lutero impediram uma reflexão aprofundada sobre a relação entre reforma protestante e a restauração espiritual do papado e, o pior: travaram o avanço do próprio ecumenismo.
Em 2016, Papa Francisco e o presidente da Federação Luterana Mundial, bispo Munib Yunan, assinaram uma declaração conjunta em prol da unidade. O documento marcou a celebração dos 500 anos da Reforma Protestante. (L'Osservatore Romano)
Por Mirticeli Dias de Medeiros*
É bem verdade que Martin Lutero, o monge agostiniano alemão que questionou a Igreja através de suas 95 teses no século XVI, contribuiu para que o catolicismo reassumisse sua autoridade espiritual, transcurada pelo mundanismo dos papas renascentistas no auge do domínio do Estado Pontifício. É só lembrarmos de Alessandro VI e Júlio II, os pontífices que antecederam o primeiro impulso de Lutero rumo à reforma protestante.
“Lutero não provinha de uma família eclesiástica importante, não está em um grande centro religioso e acadêmico. Wittenberg tinha apenas 15 anos de existência à época. Além disso, ele não estava em um grande centro comercial. [...] Por que deu certo sua reforma (em comparação às outras)? Porque os três pontos da reforma luterana, que não estão nas 95 teses, mas estão em À nobreza Cristã da nação alemã, são: o sacerdócio universal, a livre interpretação das escrituras e a justificação pela fé”, explicou a historiadora luterana Jaquelini de Souza, doutoranda da UFF e pesquisadora da Companhia das Índias na mesma instituição.
O mérito da execução de uma reforma católica tão almejada pelos italianos - realizada, em parte, pelo Concílio de Trento -, não se deve somente ao levante de Lutero e às suas medidas. A diferença é que esse personagem controverso fazia parte de um movimento que clamava por mudanças, cujo maior número de adeptos provinha justamente do baixo clero. Não podemos dizer que ele era a voz que clamava no deserto, mas a única que teve a coragem de se impor, ao ponto de mudar completamente o cenário político europeu e, assim, impulsionar a reforma católica - ou contrarreforma, um termo em desuso. O monge alemão, como tantos outros sacerdotes católicos de seu tempo, combatia a submissão da igreja - enquanto instituição divina - à lógica mundana. Esse é o ponto de convergência. Sendo assim, o presente texto não visa entrar nos pormenores nem da reforma protestante nem no cisma, ou mesmo apontar os culpados da separação, mas concentrar-se na resposta da Igreja Católica ante o movimento. Isso é tão verdade, que já no projeto de reforma Libellus Ad Leonem, entregue pelos monges camaldulenses Paolo Giustiniani e Pietro Quirino ao Papa Leão X, em 1513 - 4 anos antes das 95 teses -, se faz uma advertência ao papa sobre a necessidade de uma reforma in caput et membris. Leão X, muito preocupado com questões bélicas, longe de ser perspicaz como Eugenio IV - o papa que pôs um fim ao cisma do Ocidente -, não acreditava na iminência de outro cisma. O Concílio Lateranense V, convocado inicialmente por Júlio II e levado adiante por ele, não cumpriu a reforma consistente que se propusera a realizar. Logo em seguida, mais precisamente 6 meses depois do fim da assembleia conciliar, despontaria Martin Lutero. Será que o concílio teria evitado o cisma? Difícil saber. Porém, de alguma forma, é certo que amenizaria muitas tensões. O que Trento fez, era para esse concílio anterior já ter feito. Tudo poderia ser diferente, quem sabe, se aqueles pobres frades, cuja fidelidade ao papa era incontestável, tivessem sido escutados.
Se quisermos levar adiante um debate sério e a instauração de ecumenismo concreto que vise a unidade, precisamos desfazer os mitos e renunciar às interpretações marginais sobre Martin Lutero. Os últimos papas têm caminhado nessa direção, evitando julgamentos e colhendo as questões que unem católicos e protestantes em torno dessa figura. A começar do episódio da “fixação das 95 teses”, que, no imaginário popular, foi uma “afronta e uma profanação da catedral de Wittenberg”. Tanto os historiadores católicos da escola romana quanto os protestantes têm derrubado essa interpretação.
“As 95 teses, naquele momento, eram bastante pontuais. Naquele momento específico, Lutero não visava separar-se da Igreja. Ele queria debater especificamente a questão das indulgências. [...] Tanto que ele escreveu em latim, a língua acadêmica, e mandou uma cópia para seu bispo. Quanto à fixação das 95 teses na porta da Igreja, há controvérsias. O que se sabe é que ele queria convocar seus pares para um debate acadêmico sobre isso, não convocar o povo para uma revolução. Se porventura ele fixou as 95 teses na porta da Igreja do castelo de Wittenberg, o fez porque era o local mais público da cidade, uma prática comum, em se tratando da convocação para debates públicos”, concluiu a historiadora.
*Mirticeli Dias de Medeiros é jornalista e mestre em História da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Desde 2009, cobre primordialmente o Vaticano para meios de comunicação no Brasil e na Itália, sendo uma das poucas jornalistas brasileiras credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé.
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