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Mesmo em situações de extrema miséria é possível se permitir humanizar.
A solidariedade é o gesto que nos recorda que não sucumbimos à animalidade que as intempéries naturais e históricas causaram. Na foto, venezuelana ao lado dos seus pertences que foram queimados. (Nacho Doce/Reuters)
Por Tânia da Silva Mayer*
Publicado em Fortaleza em 1930, O Quinze, de Rachel de Queiroz, relata as dramáticas relações vividas no auge da seca nordestina de 1915. Para isso, serve-se de dois blocos fundamentais que entrelaçam a história de uma família da oligarquia cearense, possuidoras de bens e propriedades, e da família de Chico Bento, trabalhador rural que se vê obrigado a migrar com a família para São Paulo, para fugir dos perversos efeitos da seca. O estado de calamidade é tão grande, que a personagem de Chico Bento chega a se considerar desgraçada, sobretudo por ter que abandonar a terra onde possui trabalho, casa e criações para não morrer de fome com a família.
A desgraça que se abateu sobre a sua vida é a seca que o obriga a realizar a travessia em busca de uma espécie de “terra prometida”. No entanto, será nessa travessia que ele perderá a dignidade, assistirá a fuga e a morte de seus filhos e o minguar do corpo da sua mulher. A condição de retirante vai confirmando a desgraça da família que vai sendo desfeita graças às intempéries do êxodo a que foram submetidos. Mas há algo bastante interessante e que vai além do fato de Chico Bento se entender um desgraçado. E isso reside no altruísmo praticado em direção a outros retirantes, mais desgraçados ainda, que são encontrados acomodados debaixo de um juazeiro e estão em vias de se alimentarem de uma rês em estado de putrefação. O altruísmo de Chico Bento consistiu em partilhar com os outros retirantes do alimento que levava consigo para a subsistência da família. Nesse sentido, os mais desgraçados que a nossa personagem poderão devolver aos urubus o que lhes pertencem e tomar com dignidade um pouco de comida. À indagação da mulher diante da partilha do pouco que deveria ser o sustento da família durante o êxodo, Chico Bento responde que não sabe o que será no futuro, mas que “Deus ajuda!”, o fundamental é ser solidário e não deixar os desgraçados comerem algo podre.
A partir do gesto altruísta da cena de O Quinze, compreende-se que aos mais desgraçados deve-se estender a mão. Mesmo em situações de extrema miséria é possível se permitir humanizar. A travessia torna-se oportunidade de redenção dos sentimentos mais egoístas e da percepção da própria miséria. A solidariedade é o gesto que nos recorda que não sucumbimos à animalidade que as intempéries naturais e históricas causaram. Ser solidário nada mais é que ser humano. E não há miséria que nos autorize abdicar do que somos.
Por isso, choca-nos a notícia de que brasileiros de Pacaraima, Roraima, tenham expulsados os imigrantes Venezuelanos da cidade com o uso de uma força desumanizadora. Todos sabemos como as populações do Norte do país são desassistidas dos serviços públicos municipais, estaduais e federais e de como peleja-se muito para garantir o status de uma vida minimante digna. Mas não há situação difícil e conflituosa que legitime a violência e a ausência de solidariedade para com aqueles que estão ainda mais desprotegidos pelos Estados. Envergonha que algumas pessoas se mantenham insensíveis ao sofrimento dos semelhantes. Desde a literatura até a realidade vivida entende-se que um pouco de humanidade não faz mal a ninguém, e é até muito cristão.
*Tânia da Silva Mayer é mestra e bacharela em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE); graduanda em Letras pela UFMG. Escreve às terças-feiras. E-mail: taniamayer.palavra@gmail.com.
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