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Uma visão ideológica desiludida de homens e mulheres
E se homens e mulheres nem sempre forem complementares, e se as características sexuais, de fato, não predizem o comportamento individual? (Reprodução/ Pixabay)
Por Jeanne Follman*
Este é o segundo artigo de uma série de três partes explorando o problema da hierarquia católica com o sexo. A parte II compara a visão da Igreja sobre homens e mulheres com a maneira como costumávamos pensar sobre raça e a descreve como uma ideologia.
A Parte I desta série refletiu sobre a compreensão ultrapassada da Igreja sobre as diferenças inatas entre homens e mulheres, incorporadas na ideia do gênio feminino. Acontece que essa ideia de diferenças sexuais inatas é muito semelhante à forma como costumávamos pensar sobre raça.
A visão tradicional de raça mantinha o seguinte: há um número finito de raças naturais separadas; existem maneiras claras e científicas de distingui-las; existe uma essência racial fixa que cada membro de uma raça possui; e a raça pode prever o comportamento individual.
Também se assumiu no passado que as raças separadas e distintas eram parte do tecido da criação de Deus e a sociedade era moralmente obrigada a defender essa separação.
O casamento entre as raças era ilegal e os ministros que presidiam em tais cerimônias eram frequentemente processados. Essa ideia de diferenças inatas foi difundida até depois da Segunda Guerra Mundial, e foi desacreditada somente depois de ser abraçada pelo nazismo para justificar a superioridade da raça ariana pura.
Nos EUA, o casamento inter-racial só foi finalmente descriminalizado em 1967 com a decisão da Suprema Corte 'Loving vs. Virginia'.
A visão tradicional da raça é agora considerada deplorável. O Ocidente secular, incluindo a Igreja, não mais a compra. Hoje sabemos que as fronteiras raciais são confusas e que não há um meio absoluto de demarcar uma raça de outra.
Até mesmo características óbvias, como o tom da pele, caem em um continuum, com a linha que define e diferencia as raças, muitas vezes desenhada de forma arbitrária e diferente em várias culturas.
Os limites raciais mudaram com o tempo também; os irlandeses da América do século XIX não eram considerados “brancos”, como demonstram os desenhos retratando irlandeses como macacos.
Também sabemos que não há evidência de uma “essência racial” fixa e nenhuma evidência de que as características raciais possam prever o comportamento individual. Além disso, o uso da raça como razão para compelir ou excluir é completamente inaceitável.
No entanto, se começamos a aprofundar nessa visão tradicional e substituí-la pela ideia de sexo, o que temos é algo muito próximo da visão da Igreja sobre homens e mulheres.
Essa visão afirma que existem apenas dois sexos; que existem maneiras claras de distingui-los; que existe uma “essência sexual” fixa que cada membro do sexo possui; e esse sexo prediz o comportamento individual.
Nesta visão, os seres humanos são homens ou mulheres, e não há possibilidade de limites difusos entre os dois. O sexo biológico cria uma "essência sexual" distinta.
As mulheres, porque são mulheres, têm características particulares que os homens não têm. Elas são as maternas, são mais acolhedoras, mais sensíveis e intuitivas, e têm outras qualidades distintas que as tornam diferentes e complementares aos homens.
O sexo prevê e restringe o comportamento individual, e é imprescindível obrigar ou excluir com base nele. Essa visão de homens e mulheres como inatamente diferentes e complementares é parte do tecido da criação e da fundação da família, e deve ser defendida, particularmente contra as investidas do Ocidente secular.
Mas e se, neste caso, o Ocidente secular acertasse e a Igreja entendesse errado? Não seria a primeira vez.
A Igreja não condena mais a democracia, a liberdade de expressão, a liberdade de religião, a análise histórica, o ecumenismo, a crítica literária da Bíblia ou o estudo dos primeiros Padres da Igreja, como aconteceu no início do século XX. O registro histórico é rico em ensinamentos que foram silenciosamente (e com razão) abandonados.
E se, de fato, os limites sexuais forem realmente confusos, assim como os limites raciais? E se as características sexuais caírem em um continuum?
E se a biologia, a genética e a neurociência agora pintarem um quadro muito mais complexo das fronteiras sexuais, com humanos individuais compartilhando alguns pedaços de cada sexo? E se a "essência sexual" só pode ser verdade de modo geral?
E se homens e mulheres nem sempre forem complementares, e se as características sexuais, de fato, não predizem o comportamento individual? E se o acolhimento, a sensibilidade, a generosidade e a maternidade forem qualidades humanas admiráveis, em vez de serem exclusivamente femininas?
Então as dimensões petrinas e marianas se rompem, e os ensinamentos da Igreja sobre todas as coisas sexuais, baseados na ideia de diferenças sexuais inatas e complementares, incluindo seus ensinamentos sobre a homossexualidade, a ordenação de mulheres e afins, são todos gravemente falhos.
Os conservadores costumam criticar a aproximação católica da comunidade gay porque privilegia as preocupações pastorais sobre os ensinamentos da Igreja. Esta é uma crítica válida. A aproximação pastoral deve estar em harmonia com os ensinamentos da Igreja.
Mas há algumas razões muito boas para pensar que os ensinamentos em si são o problema, não a aproximação pastoral, e, portanto, precisam de escrutínio e reavaliação crítica.
Além de sua óbvia semelhança com uma visão de raça agora desacreditada, os ensinamentos da Igreja baseados em diferenças de sexo inatas e complementares são problemáticos por outras razões.
Ideologia
Desconectadas do sexo, as metáforas das dimensões marianas e petrinas são uma bela e autêntica articulação dos vários modos pelos quais a Igreja cumpre sua missão no mundo. Eles certamente funcionam como poesia. Mas fracassam como ideologia.
O Papa Francisco odeia ideologias; ele as chama de brutais e desapegadas, "divorciadas das próprias pessoas" e desconectadas das vidas que as pessoas realmente vivem. Ele diz que as ideologias “coagem a realidade para encaixar uma ideia, que transforma pessoas em instrumentos”.
Ele repreende aqueles que veem tudo "através do prisma de suas ideologias". Durante um sermão de outubro de 2013, o Papa Francisco fez este apontamento: "A fé passa, por assim dizer, através de um destilador e se torna ideologia. E a ideologia não atrai [as pessoas].
Nas ideologias não há Jesus: em sua ternura, seu amor, sua mansidão. E as ideologias são rígidas, sempre. Sob qualquer perspectiva: rígidas. E quando um cristão se torna um discípulo da ideologia, perde a fé: ele não é mais um discípulo de Jesus, é um discípulo dessa atitude de pensamento”.
Isto é exatamente o que acontece quando a Igreja ensina que homens e mulheres devem ser vistos como inatamente distintos e complementares e reforça essa diferença impedindo o acesso aos sacramentos (por exemplo, a Eucaristia, o casamento, a ordenação).
A ideologia das diferenças sexuais inatas e complementares se recusa a reconhecer a variação óbvia e avassaladora entre os indivíduos e está desconectada das circunstâncias em que tantos membros da fé vivem suas vidas.
A ideologia tenta coagir nossa realidade ampla e complexa em um ideal rígido e abstrato, prescrevendo certas obrigações e excluindo outras. E pune aqueles indivíduos cujas vidas não combinam com as características que define, especialmente aqueles que se acham nos limites difusos da sexualidade.
Tradicionalmente, o contexto moral católico que olha para qualquer questão, é sempre começar considerando a experiência concreta e vivida de seres humanos individuais, não olhar apenas para uma abstração.
Como o Papa Francisco disse em sua homilia aos sacerdotes na Missa Crismal antes da Páscoa de 2018, “A proximidade é também a chave para a verdade; não apenas a chave para a misericórdia, mas a chave para a verdade”.
As distâncias podem realmente ser encurtadas quando a verdade é considerada? Sim, elas podem. Porque a verdade não é apenas a definição de situações e coisas a partir de certa distância, pelo raciocínio abstrato e lógico.
É mais do que isso. A verdade é também fidelidade. Faz você nomear as pessoas pelo nome real, como o Senhor as nomeia, antes de categorizá-las ou definir 'suas situações'”.
Como veremos na Parte III, os ensinamentos da Igreja baseados nessa visão de homens e mulheres também contradizem o ensino e a tradição intelectual católica, e não foram bem recebidos pelos fiéis.
*Jeanne Follman é a autora de Quando o Iluminismo atingiu os bairros: o declínio da tradição católica - e a esperança para o seu futuro (When the Enlightenment Hit the Neighborhoods: The Waning of the Catholic Tradition and Hope for Its Future).
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