Carlo Tursi*
Peço licença a padre Reginaldo Manzotti e ao “XI Evangelizar é preciso/Fortaleza” que se realizará hoje, dia 20, para tomar emprestado o tema do evento (“As Muralhas vão cair”) como gancho para pendurar uma reflexão e um apelo. Sei que se trata de um verso da música “Pelo Nome”, gravada pelo sacerdote midiático, e que o seu contexto imediato, sugerido pela íntegra da letra, se resume naquela expectativa ingênua de milagres de cura e libertação, por meio do nome de Jesus, que é a marca maior de todos os devotos tradicionais. Até aqui, nihil obstat.
No entanto, faremos bem em nos precaver diante de possíveis implicações fundamentalistas e beligerantes do tema. Quem não se recordará logo da queda das muralhas de Jericó, narrada na Bíblia (Josué, cap.6)? O episódio descreve a aniquilação total da cidade declarada como anátema (= intocável, maldita; herem, em hebraico) em “nome de Deus” (sic!), com a matança indiscriminada de toda a população (6,21) pelos israelitas. Seu contexto bíblico é o da “guerra santa”, do extermínio implacável dos inimigos de “Iahweh dos Exércitos”. Nos tempos atuais de intolerância – religiosa ou política – e ódio a quem pensa ou crê de forma diferente, evocar este tipo de imaginário me parece um desserviço. A mensagem subliminar – o subtexto – de concitação à violência contra os inimigos de Deus certamente passou despercebida aos organizadores do evento. Que prestem mais atenção, pois! Não precisamos de novas “cruzadas”.
Dito isto, podemos avançar para uma interpretação simbólica da ‘queda das muralhas’ e questionar: que ‘muralhas’ devem cair? Que tipo de muros os fiéis, os crentes podem, legitimamente, ser convocados a ‘derrubar’, sem violarem com isso sua consciência cristã?
Consigo pensar, de imediato, na muralha dos preconceitos que discriminam e segregam pessoas em função de sua religião, cor, sexo, ideologia, classe social ou nacionalidade. Em termos de dignidade humana, de filiação divina até, “não há diferença entre judeu e grego, entre escravo e livre, entre homem e mulher” (Gálatas 3,28). Estaríamos violando o espírito das Escrituras, se acrescentássemos: nem entre branco e preto, hétero ou homossexual, nativo e imigrante? Acredito que não. Passemos, pois, a desconstruir esta muralha! Como votar em “projeto” (?) político que se exacerba em declarações sexistas, racistas e xenofóbicas? Para qualquer humanista ou cristão, deveria ser um “no-go” absoluto...
Que caiam, também, todos os muros – físicos ou ideários – erguidos para proteger privilégios e privilegiados, privando tantos outros concidadãos do acesso aos bens necessários a uma vida digna deste nome. “Eu vim para que todos tenham vida, e vida em plenitude”, foi o projeto declarado de Jesus de Nazaré (João 10,10). A nossa racionalidade técnico-científica tem sido bastante pródiga em produzir bens, mas mesquinha e deficiente em distribui-los. Papa Francisco se pronunciara com clareza a respeito do propósito do então candidato Donald Trump de erguer um muro na fronteira para o México: “Um chefe de Estado que, no mundo de hoje, pensa em construir muros, ao invés de pontes, não pode ser cristão”. O que dizer, então, das autodenominadas “pessoas de bem” numa cidade como Fortaleza, cuja única resposta à pobreza no entorno de seus condomínios consiste em construir muros cada vez mais altos? Será que, no aterro de Iracema, o Pe. Manzotti vai atacar estas ‘muralhas’ também – ou vai deixá-las incólumes? Que desmoronem, pois, os muros da infâmia do apartheid social!
Lembro ainda, com horror, dos muros coroados de arame farpado das penitenciárias brasileiras, atrás dos quais se oculta um cenário verdadeiramente dantesco: O que uma pessoa imbuída do espírito do Evangelho teria a dizer diante desse desafio? “Bandido bom é bandido morto!” ou “Estive preso e viestes me ver” (Mateus 25,36)? Infernalizar ou humanizar o sistema prisional? Será que um homem público pode se basear, honestamente, em ”princípios cristãos” (“Guarda tua espada na bainha, pois todos que pegarem na espada, pela espada morrerão”; Mateus 26,52) ao defender a violência como solução para a violência, a lógica de “bala por bala”, “vida por vida”, propondo o armamento do cidadão comum e incitando-o a reagir sempre quando ameaçado? Quem terá coragem de rasgar a ‘cortina de fumaça’ levantada por esse discurso, aparentemente preocupado com o cidadão, mas na verdade escondendo ávidos interesses mercadológicos da indústria armamentista, da “bancada da bala” no Congresso Nacional? Coragem, Pe. Manzotti: “Evangelizar é preciso” – e sair de cima do muro, também!
*Carlo Tursi, teólogo
Faculdade 7 de Setembro, Universidade Sem Fronteiras
Philosophisch-Theologische Hochschule Sankt Georgen
Frankfurt am Main
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