quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Fidelíssima cumplicidade

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No chão frio, não conseguia me desviar daquele olhar nem controlar as imagens e os pensamentos frenéticos que despertavam sentimentos incompreensíveis.
Entendia, perfeitamente, a minha tristeza. A doçura de sua expressão aumentava o meu vazio
Entendia, perfeitamente, a minha tristeza. A doçura de sua expressão aumentava o meu vazio (Luciana Cotta)
Por Pablo Pires Fernandes*

Tobias veio em minha direção caminhando em passos lentos e parou de repente. Imóvel, seu olhar me interrogava à espera de meu próximo gesto. Estendi o braço e ele chegou mais perto para receber o esperado carinho. Foi nosso abraço mais triste. Ali mesmo na cozinha, sentei-me no chão – incapaz de me desvencilhar daquele pequeno ser –, e me entreguei ao pranto inevitável.

Quando meu corpo parou de tremer, coloquei-o no chão, inclinando-me para trás. Estático, ele me encarava. No chão frio, não conseguia me desviar daquele olhar nem controlar as imagens e os pensamentos frenéticos que despertavam sentimentos incompreensíveis.

Doente, Tobias pode morrer a qualquer instante, disse para mim mesmo, na tentativa de controlar o fluxo mental. Nem é idoso, teria uns 55 anos se fosse um ser humano. Tem problemas no coração, de nascença, não tem cura. Os remédios são paliativos e lhe dão conforto. Mas ele vai morrer e pode ser amanhã ou daqui a muito tempo.

Depois de sete anos de cumplicidade, as manias de cada um se tornaram evidentes e estabelecemos uma relação bem própria. A presença traz conforto e alento, algo restrito aos amigos mais chegados. Entre nós, a entrega era fidelíssima, plena. No entanto, a ideia de morte me rondava.

Lembrei-me da vizinha quando, duas semanas antes, abri a porta e ela me contou, com lágrimas aflitas e gestos sem rumo, que seu querido Bob havia sucumbido. O velho maltês sofreu uma parada cardíaca. No corredor do prédio, sem saber o que fazer, abracei-a num gesto intuitivo para confortá-la.

Contudo, Tobias estava vivo e mirava fixamente as minhas lágrimas. Entendia, perfeitamente, a minha tristeza. A doçura de sua expressão aumentava o meu vazio. A possível ausência daquela amizade transformou o sentimento amargo em angústia, um oco que se espalhava a partir do estômago. Mais uma vez, encarei-o de frente. Seu olhar era sereno. Compreendia ser ele – e sua morte futura – o motivo da minha dor. A dor me doeu mais funda.

De repente, Tobias me deixou sentado no chão da cozinha, seguiu até o tapete mais próximo e se enroscou como um caramujo, sem me dizer nada. Deparei-me só diante da finitude e, num ímpeto, saquei da estante a velha foice de colher arroz. Não sou eu quem vai escolher meu momento derradeiro, constatei, depositando a lâmina de volta à prateleira.

Aquele ser – vivo ali, roncando no tapete –, animal pequeno, frágil e doente, não era diferente de mim. A condição é a mesma e inexorável desde que nascemos, sei bem sobre os Sísifos do passado e do presente. As escolhas certas são poucas e, boa parte delas, indicam os mais difíceis caminhos.

Coloquei de lado a deambulação e o que me veio à mente foi o olhar de Tobias. Nele, havia cumplicidade e afeto, não apenas uma carência canina. Diante do meu vazio cheio de soluços e lágrimas, aquele olhar era repleto de vida. Meu companheiro me confortava da dor que sua morte vai me causar.

*Pablo Pires Fernandes é jornalista, subeditor do caderno de Cultura do Estado de Minas e responsável pelo caderno Pensar.

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