segunda-feira, 19 de novembro de 2018

O dia das bodas de ouro

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O certo é que brigaram muito sem nunca chegar às vias de fato. De fato, tudo se resolvia sem tapas e sem beijos.
Atrás dos demônios viriam também os deuses da concórdia, que conseguiam pôr fim às contendas e fazer com que tudo voltasse à normalidade.
Atrás dos demônios viriam também os deuses da concórdia, que conseguiam pôr fim às contendas e fazer com que tudo voltasse à normalidade. (Pixabay)
Por Afonso Barroso*

Conheço há muitos anos esse casal de velhinhos que acaba de entrar em casa. Chegam da festa das bodas de ouro. 50 anos de casados. Linda festa. Vieram todos para a comemoração: os filhos, os amigos dos filhos, os genros, a nora, os parentes dos genros e da nora, os netos, os amiguinhos dos netos, muitos convidados. Seu Adão e dona Filomena, a dona Filó, renovaram os votos de fidelidade, trocaram alianças e até se beijaram timidamente. Estão felizes hoje. Dona Filomena, ou dona Filó, nem tanto, porque é da sua índole o mau-humor. É dona de uma rebeldia sem causa que conserva desde que veio ao mundo. Seu Adão, o marido, é diferente. Homem calmo, de extraordinária paciência e muito sábio. Vejo-o neste momento afrouxando a gravata, tirando os sapatos e sentando-se na cadeira de balanço. Pensa nas bodas e, mais do que nas bodas, no dia em que quis evitá-las.

Foi há mais de 52 anos, às vésperas do noivado, quando disse à Filó que era melhor romper o namoro. Argumentou com a incompatibilidade de gênios, de gostos, de pontos de vista. Gostava de música caipira, ela não. Gostava de música clássica, ela não. Gostava de uma cervejinha e uma cachacinha, ela não. Gostava de teatro, ela não. E por aí a fora, era uma divergência generalizada e sem conserto. E mais: a irascível Filó brigava por nada. Xingava pela simples vontade de xingar. Parecia ter inveja da inteligência do bom Adão.

Naquele dia, quando falou em romper o namoro, ela chorou estrategicamente, ele cedeu. Gostava dela, esse era o problema. Gostava, principalmente porque era uma moça de rara beleza. Lindíssima a Filomena, apesar do nome mal escolhido pelos pais. Era o que ele pensava, sem dizer. Tinha feições e corpo de Maria das Graças, de Angelina, de Cristina, até de Dorotéia, nunca de Filomena. Mas, tudo bem. E ficaram noivos, e casaram, e tiveram filhos. Três. Programados pela Filó, vieram um após outro. Todos bonitos, um menino e duas meninas.

E a vida seguiu em frente. Não posso contar tudo que aconteceu com esse casal ao longo dos anos, porque teria de chamar à lide os demônios das desavenças, das brigas frequentes, dos palavrões, das ofensas mútuas, todas causadas pelo gênio impossível da Filó. Mas é certo que atrás dos demônios viriam também os deuses da concórdia, que conseguiam pôr fim às contendas e fazer com que tudo voltasse à normalidade. O certo é que brigaram muito sem nunca chegar às vias de fato. De fato, tudo se resolvia sem tapas e sem beijos. 

Aos 83 anos, seu Adão é um velhinho lúcido. Não sofreu de doenças graves, a não ser um infarto aos 56 anos, debelado sem necessidade de cirurgia, apenas com a desobstrução de duas coronárias. Nunca mais teve problema do coração. E manteve sempre uma extraordinária paciência, que superava a de Jó. Esse personagem, segundo as Escrituras, foi submetido a todo tipo de prova, de sofrimento. Deus tirou-lhe a saúde e a riqueza, deixou-o em estado de miséria. Mas, mesmo pobre e doente, ele não reclamou e se manteve fiel a Deus. Só não foi submetido, segundo seu Adão, à maior de todas as provas: Deus não o casou com a Filomena.

Nas suas reflexões desse dia de bodas, meu velho amigo reza. E agradece a Deus, acima de tudo, por jamais ter sido indiciado na Lei Maria da Penha.

Fosse outro qualquer, inclusive Jó, teria cumprido pena de 30 anos de reclusão. 

*Afonso Barroso é jornalista, redator publicitário e editor.

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