quarta-feira, 27 de março de 2019

A carta de desabafo de Maysa em Paris

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Maysa virou o rosto e seus olhos verdes se encontraram com os meus.
Me encantava seu jeito destemido e aventureiro, sua voz rouca e as canções interpretadas com languidez e sensualidade.
Me encantava seu jeito destemido e aventureiro, sua voz rouca e as canções interpretadas 
com languidez e sensualidade. (Agência Estado)
Por Pablo Pires Fernandes*

O curso de antropologia no College de France era excelente, os professores ótimos e eu estava começando a me integrar à vida parisiense. Andava por Saint-Germain quando vi Maysa saindo de um apartamento de braços dados com um homem de terno muito bem cortado. Fazia muito frio naquele começo do ano de 1963. Os dois apertaram os corpos um contra o outro e sorriram, cúmplices.

Maysa virou o rosto e seus olhos verdes se encontraram com os meus. Eu era fã de Maysa – sou até hoje. Me encantava seu jeito destemido e aventureiro, sua voz rouca e as canções interpretadas com languidez e sensualidade.

Não resisti e, após um instante de choque, dei alguns passos e me dirigi a ela: “Maysa, gosto muito do seu trabalho”, disse com embaraço. Ela segurou o companheiro e exclamou: “Que surpresa ser reconhecida no meio desse frio”. Com corpo e alma gelados, pedi-lhe um autógrafo.

Ela vasculhava a bolsa e eu a pasta cheia de teorias em busca de um pedaço de papel e uma caneta. Estendi o volume de “Tristes Trópicos”, do Levi-Strauss, onde ela deixou escrito: “Com afeto e calor brasileiros, Maysa”. Jamais me esquecerei do aceno dela atrás do vidro do carro.

Quando uma rajada de vento me tirou do torpor, vi um envelope dando cambalhotas na calçada. A letra era de Maysa e, trêmulo, olhei à minha volta e o guardei no bolso do sobretudo, corri para casa e li:

“Querido F.

Fiz um show lindo no Olympia com orquestra e tudo. Foi um sucesso. Cantei músicas brasileiras, mas o maior aplauso foi quando interpretei ‘Ne Me Quitte Pas’. Aplaudiram de pé por um longo tempo e fiquei muito emocionada. O Bruno, diretor da casa, me empurrou e tive que voltar ao palco mais três vezes. Os jornais comentaram cheios de elogios, dizendo que eu sou a Edith Piaf sul-americana e a imperatriz da bossa nova, veja só, très chic!!

Outra novidade, talvez até já saiba, é que estou apaixonada. Ele é espanhol, advogado, uma pessoa maravilhosa. Temos mil planos e estou pensando aceitar o convite de me casar e ir morar na Espanha com ele. Em breve, devo ir ao Brasil, que ele quer conhecer, mas deve ser rápido porque recebi uma proposta de gravar umas músicas aqui em Paris.

Bom, depois que falei da parte boa, para você que me conhece, eu digo. Ainda me sinto angustiada. Mesmo distante, sei que as pessoas aí no Rio falam mal de mim e se preocupam demais com a minha vida. Isso me deixa bem chateada. Às vezes, tenho vontade de desaparecer, de sumir de todos e de tudo. Vivo do meu jeito, você sabe, mas às vezes fico muito deprimida.

Vou me manter viva. Não, não vou me entregar, não sou e nunca fui heroína. Nem almejo ser. Não é isso. A gente sempre quer um tanto de coisas. Deseja, cria expectativas, espera que as pessoas sejam boas. Só que nem sempre é assim e isso nos faz sofrer. Aprendi com isso, só que ainda sofro. De um jeito diferente, mas ainda sinto aquela dor no peito.

Amigo, querido, apesar do desabafo, saiba que estou bem e que continuo me entregando de corpo e alma às paixões e à música.

Um grande e saudoso abraço,

Maysa”

Só agora, tantos anos depois, tenho coragem de revelar esta história e queria pedir desculpas a F. por não ter enviado a carta da amiga. Mas estas palavras têm me acompanhado como um talismã por toda a minha vida.

*Pablo Pires Fernandes é jornalista há mais de 20 anos, trabalhou nas editorias de Cultura e Internacional nos jornais O Tempo e Estado de Minas, onde foi editor do caderno Pensar. É diretor de redação do Dom Total.

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