quarta-feira, 17 de abril de 2019

Em 'Game of Thrones', Cristo é uma garota em um dragão

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'Game of Throne' e o cristianismo bebem de um mesmo imaginário e têm algo em comum sobre a temática da libertação.
Kit Harington e Emilia Clarke interpretam Jon Snow e Daenerys Targaryen 'Game of thrones'.
Kit Harington e Emilia Clarke interpretam Jon Snow e Daenerys Targaryen 'Game of thrones'. (Reprodução/ HBO)
Por Jim McDermott*

Na noite do domingo passado (14), reunimo-nos e nos preparamos para a temporada final e a última vez que assistimos Game of Thrones. Perguntas sobre o desfecho do seriado se multiplicaram como Freys num casamento (vermelho). Será que Jon Snow descobrirá que ele e Daenerys Targaryen tem histórias relacionadas e será que esse conhecimento vai impedir a possibilidade de bebês-dragão-lobo? Será que Jon, Dany ou Tyrion se sentarão no Trono de Ferro? Será que alguém finalmente (por favor!) derrubará Cersei (por favor!)? E se o fizer, seria Sansa, Jamie ou Arya “vestida” como Jamie? (Proteja seu rosto, Sir Jamie!)

Além disso, a humanidade vai superar o Rei da Noite e suas forças, que incluem praticamente todos os que já morreram? Isso poderia significar que também estamos à espera de algumas reuniões que parecem piada? Ned Stark sem cabeça pode não ser capaz de beijar Catelyn novamente, mas imagine todas as pessoas que pode levar com ele. (Mais, talvez a versão White Walker de Rickon tenha aprendido a correr em ziguezague.)

Quem vai viver? Quem vai morrer? Missandei e Verme Cinzento, Sam e Gillie e Fantasma e Nymeria terão seus finais felizes?

Contudo, enquanto venho revendo a série nas últimas seis semanas - e obcecado com as histórias secundárias do autor, como o extenso prequel de George RR Martin sobre os Targaryens, Fogo e Sangue, e seu conjunto de maravilhosos contos, O cavaleiro dos sete reinos (eu talvez esteja ligeiramente empolgado) -, a maior questão com a qual lutei é me perguntar o que é tão profundo nesse show que cativou totalmente a imaginação das pessoas. Sim, a série é agraciada com uma coleção incrivelmente rica de personagens, muitos deles azarões e todos lutando para sobreviver em um mundo cheio de reviravoltas malucas que não deixa ninguém a salvo. Ela também tem sequências de ação com qualidade de filmes blockbusters, incluindo a versão "Westeros" de O Resgate do Soldado Ryan e um cerco de exército zumbi na 5ª temporada que pareceu uma brilhante longa e afrontosa batalha de rap de tudo que The Walking Dead tentou ser pelos últimos 10 anos.

Notícias de TV a cabo tendem a lançar Guerra dos Tronos como uma espécie de chave interpretativa para entender as mudanças políticas do mundo real. Mas essa é uma analogia que raramente faz algum sentido, já que a administração atual [do governo Trump] não tem nem a brilhante e conspiratória astúcia política de um Mindinho, nem a implacabilidade de uma Cersei Lannister. É do jeito de "Thrones" só até na medida em que parece com a patuscada e as piores qualidades do Rei Joffrey e Robert Baratheon.

Mas o que mais me impressionou foi o grau em que todos os personagens dos Guerra dos Tronos estão presos dentro de convenções sociais. Jon Snow vai para a grande muralha quando adolescente para viver o resto de sua vida na versão Westeros de uma ordem religiosa (celibato, mas com espadas), não porque ele quer essa vida, mas porque, como uma criança nascida fora do matrimônio, ele sente que não tem um lugar de verdade em sua família. Tyrion Lannister, embora na verdade seja o personagem mais decente da série, é repetidamente acusado de ter feito as piores coisas - e essas afirmações são geralmente aceitas pelos outros - simplesmente porque é um anão. Samwell Tarly resgata uma mulher e seu bebê de assassinos (repetidamente), mata duas das mais perigosas criaturas vivas e arrisca sua vida para salvar um homem de uma doença incrivelmente perigosa, mas ele também é gordo, então até os irmãos que juraram ficar com ele se sentem justificados em espancá-lo e tentar estuprar a garota que ele está protegendo.

E tudo isso empalidece ao lado da experiência das mulheres na série, que, se são mal ou bem nascidas, são todas no final das contas propriedades para serem usadas e trocadas por homens pelo seu próprio entretenimento ou jogos de poder, enquanto os corpos das atrizes que as interpretam também foram constantemente negociados segundo as classificações dos co-criadores masculinos da série. (Considerado como um todo, tanto a quantidade de nudez feminina exigida do elenco quanto a violência cometida contra as meninas e as mulheres ao longo do seriado tem sido chocante. Só na última metade da 5ª temporada, uma garota foi queimada na fogueira pelo próprio pai, ela grita um dos sons mais terríveis que já ouvi na televisão, outra garota foi estuprada pelo marido, o qual lhe parecia idôneo, como outro homem a convenceu; outras três foram espancadas por um homem que está escolhendo quem ele vai estuprar; e uma mulher foi forçada a andar nua pelas ruas de Porto Real enquanto multidões zombavam dela e jogavam excremento nela. Os criadores deixaram a cena acontecer por mais de sete minutos.)

Por todas as temporadas da série, menos na mais recente, Daenerys Targaryen, Primeira de Seu Nome, Khaleesi do Grande Mar da Terra e Mãe dos Dragões, viveu em um continente totalmente diferente de todos os outros. Temporada após temporada, os espectadores se perguntam não apenas quando Khaleesi está vindo tomar Westeros, mas por que a história dela está tão desconectada da de todos os outros. Enquanto todos os outros tramam e tentam ganhar poder (e morrem), Daenerys tem estado... libertando escravos estrangeiros? Quê?

E ainda assim, ao começarmos estes seis episódios, parece-me que o trabalho de Daenerys incorpora o coração de Guerra dos Tronos e o elemento que torna o programa tão profundamente convincente, ou seja, a tentativa de se livrar das cadeias debilitantes da convenção social e às vezes da família, em favor de uma liberdade de escolher o próprio caminho e identidade para si mesma. Todos nós nos perguntamos quem acabará por se sentar no Trono de Ferro, mas Dany já rejeitou essa maneira de pensar. "Lannister, Targaryen, Baratheon, Stark, Tyrell", diz ela em uma cena no coração da série, "eles são todos os raios de uma roda. Este está no topo, e aí aquele está no topo, e por aí gira sobre a roda, esmagando aqueles no chão”.

"É um sonho lindo", diz Tyrion, "parar a roda. Você não é a primeira pessoa que já sonhou isso”.

"Eu não vou parar a roda", ela responde. "Eu vou quebrar a roda."

Um dos grandes insights da Igreja Católica no século XX foi que Jesus veio para libertar as pessoas. Se olhar para a totalidade das ações de sua vida, não apenas a cruz, mas tudo que ele fez - desde comer com os pecadores, gastar tempo com mulheres, estrangeiros e outros considerados impuros, exorcizar endemoniados e curar doentes - a coisa que eles têm em comum é o desejo de libertar as pessoas - do pecado, é claro, mas também do preconceito e da marginalização social. Todos nós temos um lugar na mesa do Senhor, e qualquer um e qualquer coisa que dissesse o contrário não é confiável.

Isso não quer dizer que o caminho da vida seja fácil. Seja você um adolescente tentando resolver seus afetos, um jovem adulto lutando para discernir o que fazer da sua vida, um pai ou um cônjuge tentando equilibrar responsabilidades e sonhos, um idoso que se acha frequentemente ignorado ou um católico tentando ser fiel ao Evangelho em meio a revelações surpreendentes de abuso e de encobrimento, sendo fiel a si mesmo, para se tornar realmente o que é, é muitas vezes angustiante.

E ainda, no final, pergunta "Game of Thrones", o que mais há? A iminente ameaça do Rei da Noite é a realidade que todos nós enfrentamos. Dia após dia, a morte está chegando para cada um de nós. Em face dessa verdade absoluta, vamos passar o breve tempo que nos é dado algemado às exigências de outras pessoas, ou vamos lutar por nós mesmos e pelos outros?

A mesa está posta. Um banquete aguarda. Tomara que não seja um casamento.


America Magazine - Ramón Lara

*Jim McDermott, SJ, é correspondente da América em Los Angeles.

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