sexta-feira, 3 de maio de 2019

A Filosofia e a humanização

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A razão é como um gato. A maneira como é estimulada ou domesticada fará com que ela corresponda ou não à sua natureza.
A Filosofia pode gerar pensamento autônomo, por isso não é interessante a quem pretende domesticar os outros com o intuito de mantê-las sob domínio.
A Filosofia pode gerar pensamento autônomo, por isso não é interessante a quem pretende domesticar os outros com o intuito de mantê-las sob domínio. (Yerlin Matu/ Unsplash)
Por Vitor Vinicios da Silva*

“[...] Ouço, agora, porém, exclamar de todos os lados: não raciocineis! O oficial diz: Não raciocineis, mas exercitai-vos! O financista exclama: não raciocineis, mas pagai! O sacerdote proclama: não raciocineis, mas crede”. Com essa citação do profeta e filósofo alemão Emanuel Kant (1724-1804), no seu texto: “Resposta à pergunta: O que é esclarecimento [Aufklärun]?” que buscaremos entender a saída da minoridade para maioridade [Aufklärung] do pensar tutelado para o pensar por si próprio podendo ser entendido também como o fazer filosófico.

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Em tempos de muita secura e de pouca água, onde a semente plantada morre sufocada por falta de água ou na luta por luz contra o chão seco, que procuraremos esclarecer o valor da filosofia para o desenvolvimento do homem e da mulher no processo de humanização. Em tempos em que a Filosofia é tida como um mero adorno humano e nada mais que isso, há necessidade de cessar nossa pesca para ver qual o caminho que o rio vem tomando, pois pode ser o da pirambeira.

Já nos idos anos da história da humanidade que a Filosofia vem alimentando pensadores e pensadoras que mudaram o decurso do rio sendo, provavelmente, um dos motivos do medo causado por ela. O amor pelo conhecimento ou o gosto pela sabedoria, sentido etimológico da palavra philosophia, nos permite sair da tutela, deixar de obedecer para usar de nossa própria consciência para ser-sendo no mundo. Para entendermos esse exílio de uma minoridade para uma maioridade e a importância da filosofia podemos nos assemelhar à metáfora do “gato no apartamento”.

Somos semelhantes ao gato que é um animal feroz, que carrega dentro de si suas potencialidades animais. De certo, também carregamos dentro de nós nossas potencialidades e virtudes que são estimuladas pelo uso da Filosofia, isto é, pelo uso da razão. A maneira com que o gato é criado, o terreno que ele é estimulado, permite que ele desabroche naquilo que faz parte da sua natureza. Ora, se um gato é criado dentro de um apartamento, em que recebe uma alimentação no devido horário, dorme a seu bel-prazer e é acariciado a todo o momento, com certeza, conheceremo-nos como um gato domesticado. Ele não saberá caçar sua própria comida, não saberá se defender e não saberá saltar como um que estimulou suas potencialidades. Dessa forma, o ser humano se faz semelhante ao se eximir do pensar por si próprio.

O terreno (escola/sociedade/família...) que ele é estimulado deve permitir que esse florescimento aconteça. Uma escola que não permite liberdade de expressão, discordância e que não fomente o pensamento crítico, é um apartamento. Uma sociedade governada por um déspota que não permite diálogo, aceitação do diferente (oposição) e liberdade de expressão, é um apartamento. Famílias que não fomentam o diálogo, a aceitação, o amor e o carinho, são um apartamento. Assim, criamos, no decorrer do rio, uma sociedade de massa, na qual, não há rosto e nem identidade, somos todos iguais e não aceitamos o diferente.

Como o gato que se torna preguiçoso ao ser domesticado, nós também podemos comungar do mesmo estado, nos tornamos seres atrofiados ao negar o ensino da maturidade, ou seja, da Filosofia. Aqueles que permitem ser domesticados podem gostar das migalhas dadas, podem se conformar com a alimentação, com a água, com o passeio duas vezes na semana e com o banho dado raramente. O dono do apartamento pode conduzi-lo como bem deseja, pode diminuir sua comida, colocá-lo para dormir na varanda e o que mais desejar. A partir do momento que o gato tomar consciência da sua animalidade, da sua capacidade de sair daquela condição e caçar com suas próprias capacidades, o dono deixará de dominá-lo. É claro que sair do lugar cômodo é difícil, pressupõe renúncias e desafios, porém os benefícios são maiores do que esses, como a liberdade, o conhecimento, enfim, o vir a ser o gato que traz dentro de si.

Com essa metáfora simples podemos compreender o valor da Filosofia para o ser humano. Com ela seremos capazes de construir novos caminhos, novas sociedades, novas relações e sermos autênticos no mundo. Sair do apartamento é adentrar no campo da Filosofia, é afastar-se do familiar e construir seu próprio pensar. Filosofar não é, muitas vezes, fornecer novas informações, mas convidar e provocar a uma nova maneira de ver. Essa Filosofia é o autoconhecimento humano, é como a inocência perdida. Por mais perturbador que se considere, jamais poderá ser dispensada ou dessabida. Em um dialogo de Sócrates com Cálicles, o filosofo é advertido pelo seu interlocutor. Parafraseando, Cálicles diz: “Pare de filosofar, caia na real. Vá estudar administração”. Por certa semelhança com os dias atuais, ele pode estar certo, dependendo do curso que quer que o rio siga.

Fazer filosofia é distanciar-se das convenções, das conclusões estabelecidas, das crenças sutis e do obedecer. Esses são os riscos pessoais e políticos da Filosofia. Em face a esses riscos, há uma tendência característica dos governos totalitários, ou seja, “a negação da filosofia”. Porém, retomando o filosofo Kant, a minoridade não é uma moradia para habitação permanente e nada bastará para superar a inquietude da razão. Assim, tomemos consciência da importância da filosofia para nossas vidas e para nossa própria sociedade, não podemos permitir que nos amarrem aos grilhões do autoritarismo e que fechem as janelas do apartamento. A água do esclarecimento deve regar os terrenos sociais para que não percamos a vitalidade da planta, para que o verde da esperança cresça e realce nossas vidas. Enfim, para adentramos ao som da vida que canta a cartase pessoal que nos permite ver com nossos próprios olhos e descobrirmos quem somos e para onde caminhamos.

*Vitor Vinicios da Silva é professor de Filosofia e frade menor da Província Santa Cruz

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